Normas genéricas sobre câmeras corporais inibem uso das imagens como prova
sexta-feira, 12 de dezembro de 2025, 16h10
Apesar de o governo federal ter estabelecido diretrizes para o uso de câmeras corporais por agentes de segurança pública, em maio de 2024, ainda não há uma aplicação unificada de regras sobre a gravação das imagens, a guarda dos arquivos e seu compartilhamento com órgãos de controle e magistrados. Por causa disso, o uso desses vídeos como prova é limitado na Justiça Criminal.
Essa é uma das conclusões da pesquisa “Algoritmos e Direitos: Tecnologias Digitais na Justiça Criminal”, publicada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC). De acordo com o trabalho, não há mecanismos para garantir que os vídeos sejam acessados e efetivamente usados como prova em ações que apuram a irregularidade de abordagens policiais.
A pesquisa aponta a falta de critérios unificados entre os estados para a preservação da cadeia de custódia das imagens. Além disso, não há protocolos claros para o envio dos vídeos ao Ministério Público, à Defensoria Pública e aos tribunais.
O próprio Judiciário, segundo os pesquisadores, tem feito pouco uso do recurso. “A defesa solicita as imagens, a polícia não as envia no prazo estipulado e o juiz, por sua vez, não reitera a ordem judicial. O processo segue seu curso como se a prova nunca tivesse sido requisitada”, afirma um trecho do material.
Protocolos próprios
Por meio de pedidos às Secretarias de Segurança Pública, via Lei de Acesso à Informação (LAI), a pesquisa mostra que apenas sete estados já usam plenamente as câmeras nos uniformes dos agentes: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Paraíba, Rio Grande do Sul e Pará. Os demais informaram que não usam, que estão em fase de implantação ou não deram resposta.
Os governos estaduais devem seguir as regras da Portaria 648/2024, do Ministério da Justiça e Segurança Pública. O texto estabelece diretrizes sobre o modo como as imagens devem ser gravadas, armazenadas e entregues ao Judiciário.
O CESeC ressalva, porém, que a normativa nacional é “mais descritiva do que executiva”, pois não estabelece mecanismos de integração entre as esferas de governo, nem define responsabilidades claras quanto à custódia e ao acesso aos registros. Dessa forma, cada estado adota seus próprios protocolos, que nem sempre são transparentes.
Essa visão é compartilhada pela advogada Paloma Mendes Saldanha, professora da Universidade Católica de Pernambuco e especialista em Direito e Tecnologia.
“Nós realmente temos uma normativa que é descritiva, mas não diz como executar essa descrição. Mais que isso, não temos um sistema de Justiça preparado para executar qualquer norma que venha. E também não temos uma sociedade educada digitalmente para entender como isso tudo vai funcionar.”
Para a professora, uma das lacunas da portaria do Ministério da Justiça é sobre a cadeia de custódia das imagens — procedimentos que garantem a autenticidade e a integridade de uma evidência desde a sua coleta até o seu descarte.
“Existe hoje uma fragilidade regulatória muito grande em termos de coleta, armazenamento e manutenção dessas provas. Não temos um protocolo unificado de como aquela prova será conservada para que possa servir ao Judiciário.”
Valor probatório
A pesquisa da CESeC conclui que as imagens são negligenciadas tanto na audiência de custódia — que pode comprovar ou descartar alegações de abuso policial nas prisões em flagrante, por exemplo — quanto nas fases seguintes da persecução penal.
No caso das audiências de custódia, isso ocorre principalmente pelo fator tempo: como não há protocolo que determine o envio automático dos vídeos aos magistrados e aos órgãos de controle, é comum que as imagens não estejam disponíveis para a audiência, que deve ser feita até 24 horas após a prisão.
“O resultado é um vácuo de comunicação interinstitucional: as imagens permanecem armazenadas nas corporações e raramente chegam a tempo de subsidiar decisões sobre prisões ilegais, maus-tratos ou excesso de força”, afirma o estudo.
A mesma dificuldade é observada com o processo em andamento. Segundo a pesquisa, os magistrados ainda não têm o costume de valorizar as imagens como elemento dos autos e cobrar o seu envio pelas polícias, mesmo quando as defesas pedem os arquivos.
“A questão da imagem simplesmente se perde na burocracia processual, e a ausência de uma evidência que poderia ser crucial para a defesa não impede o andamento do caso, que continua a se basear predominantemente na palavra dos policiais”, criticam os pesquisadores.
O advogado Frederico Cattani, mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS, concorda que as imagens deveriam ser melhor utilizadas pelo Judiciário. Ele lembra, todavia, que o valor probatório desse material não é absoluto no Processo Penal.
“A busca pela imagem da câmera não pode ser um fim em si mesmo. E isso vale para qualquer tecnologia. Há até pouco tempo, por exemplo, uma pessoa podia ser condenada com base apenas no reconhecimento fotográfico, e isso não pode acontecer. Então a imagem da câmera corporal é apenas um elemento probatório, que precisa vir acompanhado de outros.”
Fonte: Conjur