Conjur: Assédio de consumo na economia digital, atuação do MP para garantir tutela do princípio da transparência
por Renata Pozzi Kretzmann e Luciano de Faria Brasil
quarta-feira, 30 de julho de 2025, 17h05
A prática agressiva de consumo é aquela que tenta pressionar o consumidor de forma impor sua decisão, explorando emoções, medos, confiança e outras situações especiais. O assédio de consumo que acontece no mundo digital tem quase sempre como característica a violação da privacidade das pessoas.
Dados como preferências de compra, localização, gênero, idade, endereço e outros são utilizados para induzir o consumo, muitas vezes sem o consentimento ou sem informação. Os avanços tecnológicos promovem inúmeros benefícios e estimulam o bem-estar de seus usuários, mas também facilitam a intromissão progressiva nos fatos da vida privada. Os direitos da nova geração, como explana Bobbio, nascem todos dos perigos à vida, à liberdade e à segurança, provenientes do aumento do progresso tecnológico e se relacionam com a constante diminuição da esfera privada das pessoas.
Privacidade, aliás, é termo que diz respeito à vida íntima e pessoal, derivado do vocábulo privacy, em inglês. O nascimento da privacidade pode ser relacionado à desagregação da sociedade feudal, na qual todos eram ligados por relações complexas que determinavam o agir no dia a dia. Estar sozinho era distinção de poucos. Com o desenvolvimento da sociedade, inúmeras condições passaram a contribuir para a evolução da necessidade de privacidade e sua satisfação representava a aquisição de um privilégio.
As noções de privacidade e intimidade estão relacionadas com a natureza humana. Vida privada é confidência, amizade, reserva e atos que as pessoas queiram preservar da divulgação ou do conhecimento de terceiros. Não é propriamente intimidade, conceito que se encontra na consciência de cada indivíduo, de maneira mais interna. A privacidade é própria dos atos humanos externos e jurídicos que a pessoa preserva e espera que o Direito também assim o faça.
Na sociedade moderna em que vivemos, anônima e complexa, o debate sobre privacidade ganhou novos contornos, principalmente com o advento dos recursos tecnológicos que permitem a circulação de informação, como a internet e o smartphone. A privacy de hoje vai além de questões como isolamento ambiental ou tranquilidade.
O desenvolvimento tecnológico proporcionou que se encontrasse utilidade nas informações obtidas, que passaram a ter valor econômico. A discussão atual sobre a utilização de dados pessoais não se restringe à proteção da privacidade de cada indivíduo; passou-se a analisar a ampla dimensão das consequências da economia baseada em dados que influencia direitos, deveres e relações de poder. A tecnologia passou a ocupar lugar de destaque na dinâmica social após a Revolução Industrial e cada vez mais influencia o cotidiano de todos nós.
Por mais exógena que possa parecer, a tecnologia é produto do homem e de sua cultura e com ele sempre irá se relacionar. Trata-se de um vetor condicionante da sociedade, que influencia o tempo, o espaço, a tomada de decisões, os instrumentos de produção e todas as relações entre os seres e entre os seres e máquinas na sociedade de informação.
“A informação, ademais de direito ou dever, é geradora de novo ambiente. Trata-se de locus imaterial, de presença espectral, com ampla facilidade de acesso, agilidade e campo de abrangência, responsável por recente dimensão humana: a virtual.” O processamento de informações torna viável a sociedade em que vivemos, com comportamento incentivado e voltado para o consumo.
Fala-se em economia comportamental, com suas ferramentas como dark patterns, nudges e outras práticas mercantis utilizadas com o objetivo de fazer o consumidor comprar ou induzi-lo a pensar que precisa ou não precisa de determinado bem. São instrumentos dos quais os fornecedores lançam mão no mundo digital para influenciar o comportamento, muitas vezes utilizando dados pessoais, para que a indução ao consumo seja rápida e certeira, realmente personalizada, diretamente ao consumidor.
A economia comportamental pode ser compreendida como uma tentativa de superar as deficiências das teorias econômicas tradicionais. Baseia-se em um tratamento interdisciplinar dos comportamentos humanos nas tomadas de decisões. É uma corrente que se vale de conceitos da ciência da psicologia para compreender os elementos anímicos que influenciam o consumo e possibilitar a utilização de padrões específicos para cada tipo de público.
Os padrões comerciais deceptivos, práticas obscuras ou práticas de design enganosas, por exemplo, são padrões comerciais utilizados para influenciar ou enganar os consumidores. Normalmente as pessoas tomam decisões não intencionais, pois não percebem exatamente onde estão clicando ou não enxergam as mudanças feitas na tela durante o processo de aquisição no comércio eletrônico.
Os padrões escusos podem englobar truques como uso de cores, sombras, mudanças no carrinho de compra, abertura de novos links, mudanças de preço do produto, imposição para seguir determinado caminho para comprar, inserção de valores não inicialmente previstos, de forma automática, inserção de taxas ou valores de serviços agregados de maneira obscura, inserção de informações em locais de difícil acesso no site. São práticas incondizentes com a boa-fé e que podem se enquadrar no conceito de práticas desleais e no rol do artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor.
Inteligência artificial
Somada à discussão sobre assédio de consumo e privacidade está a proteção dos direitos das pessoas no mundo da inteligência artificial e suas aplicações. A Europa tem sua regulação. O AI Act traz uma série de conceitos e determinações, com o objetivo de regular a atividade empresarial que utiliza IA.
A utilização de sistemas de inteligência artificial para persuadir o consumidor em desrespeito ao princípio da boa-fé pode caracterizar assédio de consumo. Por exemplo, o projeto de lei 145/2024 atualmente tramita no Senado com o objetivo de criar o artigo 37-A no CDC e proibir a publicidade de pessoa viva ou falecida manipulada mediante o emprego de sistemas de IA para o processamento, análise e geração de imagens e áudio com o intuito de influenciar a percepção do consumidor quanto ao produto ou ao serviço e promover sua comercialização.
Nos incisos estão exceções, hipóteses em que essa publicidade seria, então, permitida: caso houvesse consentimento prévio expresso do titular do direito de imagem e caso houvesse informação ao consumidor, de forma ostensiva, sempre que a imagem ou áudio for exibido mediante uso de inteligência artificial. Note-se que a o projeto traz o vocábulo “e”, o que permite a conclusão de que os requisitos seriam cumulativos.
É proposta interessante e que valoriza a boa-fé e a necessidade de agir de maneira transparente. “A transparência é um resultado prático, que a lei substancialmente persegue mediante o que se pode denominar princípio (e correspondentes deveres legais) de informação.”
O princípio da transparência é marca da legislação de proteção de dados em diversos sistemas jurídicos e diz respeito às informações fornecidas aos titulares de dados sobre a identidade do responsável pelo tratamento e os fins a que se destina, bem como às informações necessárias para salvaguardar os direitos dos titulares. A informação prévia ao consumidor sobre a utilização de IA certamente trará outro impacto à publicidade, diminuindo as possibilidades de que seu destinatário incida em erro ou compre por impulsão ou emoção, pensando se tratar de coisa ou pessoa verdadeiramente existente.
De todo o cenário exposto, resta claro que a tutela das práticas agressivas de consumo exigirá não só a atenção redobrada das instâncias de defesa dos consumidores, mas também um reposicionamento em relação aos procedimentos de avaliação e controle das práticas de mercado. O consumo digital e a publicidade impulsionada por IA não constituem uma simples transposição para o âmbito virtual das realidades de consumo existentes na década de 90, quando da edição do CDC.
Ao contrário. O ambiente de consumo digital traduz uma realidade completamente nova, impondo a necessidade de um novo olhar para os órgãos de proteção do consumo informado e responsável. Esta exigência radical de uma nova postura e de um novo olhar inicia nas instâncias de controle extrajudicial (como os Procons), passando pelas associações e institutos de defesa do consumidor e chegando aos órgãos públicos com legitimação para propor a tutela judicial das relações de consumo.
Neste sentido, a necessidade de redimensionamento da atuação do Ministério Público, na qualidade de órgão constitucionalmente legitimado para a defesa dos direitos difusos e coletivos, i.e, de defensor da coletividade, ganha ainda mais relevância, especialmente no manejo dos institutos extrajudiciais e na propositura das ações coletivas de consumo e das ações civis públicas (institutos adequados para a resolução judicial das questões metaindividuais).
O direito do consumidor (tomado em sua acepção mais ampla, incorporando em seu conteúdo a disciplina de proteção de dados) é uma das principais trincheiras onde estão sendo travadas as discussões sobre alcance e efetividade da defesa dos direitos difusos e coletivos. É lógico, então, esperar que o MP seja um protagonista nesses debates, apresentando novas formas de investigar, atuar e resolver conflitos.
É claro que, quando se alude à possibilidade de ajuizamento de ação coletiva de consumo ou de ação civil pública, alude-se à possibilidade de atuação do Ministério Público, da maneira mais ampla, para a solução de questões de natureza metaindividual, inclusive com o uso de instrumentos extrajudiciais de recomposição da legalidade ou de construção de soluções concretamente adequadas, como a mediação, a composição, o termo de ajustamento de conduta e a recomendação. A legitimação do Ministério Público para atuar como órgão agente em questões de cunho difuso ou coletivo compreende toda iniciativa decorrente de tal circunstância, mesmo que pré-processual ou extraprocessual.
Assim, além da atualização tecnológica para tratar adequadamente as novas realidades advindas do consumo no âmbito digital, espera-se também uma atuação menos focada no processo e mais atenta à solução efetiva. Como já dito em outra ocasião, é preciso transitar de um modelo demandista, que tem por meta a atuação perante o Poder Judiciário, na condição de simples agente processual, para um modelo resolutivo de atuação, que tem como horizonte a solução direta das questões referentes aos interesses coletivos e difusos, avançando além da perspectiva meramente processual de atuação. É uma justa expectativa neste momento de evolução tecnológica e transformação sociológica dos hábitos de vida e de consumo.
Fonte: Conjur