CONJUR: O melhor interesse da criança no sequestro internacional de menores
terça-feira, 18 de novembro de 2025, 15h57
O princípio do melhor interesse da criança é a pedra angular do direito de família, consagrado internacionalmente pela Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU (1989).
Em essência, esse princípio impõe que toda decisão judicial, administrativa ou legislativa que envolva uma criança tenha como objetivo primordial assegurar seu desenvolvimento saudável e seguro, em um ambiente de afeto, livre de violência, abuso ou negligência.
Desafio do sequestro internacional de menores
Nas disputas familiares transnacionais, como nos casos de sequestro internacional de menores, o princípio enfrenta um terreno de alta complexidade, em que diferentes sistemas jurídicos e culturais colidem.
O instrumento normativo central é a Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças (1980), incorporada ao ordenamento brasileiro pelo Decreto nº 3.413/2000. Seu objetivo primordial é garantir o retorno imediato da criança ao país de residência habitual, sob a lógica de que é nesse país que a criança se sente pertencente, por ser onde se formaram seus principais laços afetivos, culturais, sociais e linguísticos.
O retorno imediato, contudo, não é absoluto. O artigo 13, alínea ‘b’, da Convenção de Haia, prevê exceção importante: o retorno pode ser negado se houver “risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável”.
Em relevante avanço jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 4.245 e 7.686, em agosto de 2025, firmou entendimento de que o retorno da criança pode ser negado não apenas quando o alvo direto do perigo é a própria criança, mas também quando o risco é direcionado à pessoa responsável pelos seus cuidados, o que ocorre na hipótese de haver violência doméstica cometida contra a mãe.
A Corte reconheceu, com acerto, que o bem-estar materno está intrinsecamente ligado ao bem-estar da criança. Um ambiente hostil para a mãe gera, inevitavelmente, uma situação intolerável para os filhos, inviabilizando seu desenvolvimento saudável.
Efeito do tempo e integração da criança
A situação intolerável não é a única hipótese que pode afastar a regra do retorno. A lógica da Convenção de Haia deve ser relativizada diante da realidade fática, especialmente quando o tempo decorrido consolida a integração da criança ao novo país.
Exceção do risco grave e a evolução da jurisprudência
Um exemplo marcante é o caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Agravo em Recurso Especial (AREsp) 2.525.844/RJ. Em 2019, uma mãe brasileira deixou a Irlanda com duas filhas pequenas, de um e dois anos, e retornou ao Brasil sem autorização paterna. O pai, que permanecera na Irlanda, solicitou o retorno das crianças com base na Convenção.
Embora a mãe alegasse violência doméstica, à época o STF ainda não reconhecia tal circunstância como motivo legítimo para negar o retorno. O fator decisivo foi o tempo. O artigo 12 da Convenção de Haia determina que o retorno da criança pode ser negado após decorrido um ano da data da transferência para país terceiro, desde que provado que a criança já se encontra integrada no seu novo meio.
No entanto, em completo desrespeito a essa determinação legal, as meninas foram enviadas de volta para a Irlanda por meio de um mandado de devolução que só foi cumprido em 2023, quando as elas já tinham 4 e 6 anos, estavam escolarizadas, falavam português como primeira língua e haviam passado mais da metade da vida no Brasil.
Felizmente, esse não foi o fim da história. O trauma da separação abrupta e da reinserção em contexto estrangeiro contrastava claramente com o melhor interesse proclamado. Submetido o caso à análise do STJ, a Corte reverteu a decisão e ordenou o retorno das crianças ao Brasil.
Relevância da oitiva dos menores
Outro aspecto crucial para a efetivação do princípio do melhor interesse é a escuta da criança e do adolescente. A opinião do menor deve ser considerada, de forma adequada à idade e à maturidade, como elemento efetivo da decisão judicial. A falha em garantir uma escuta especializada e real configura um grave prejuízo processual e violação dos direitos da infância.

Essa falha ficou evidente em um caso envolvendo uma mãe brasileira e um pai suíço, marcado por alegações graves de abuso e negligência. À época, a filha do casal tinha 12 anos, idade em que, em consonância com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), já possui discernimento suficiente para manifestar sua vontade de modo relevante. A ausência de uma escuta especializada representou grave prejuízo a esta adolescente, tendo em vista que a Suíça pediu a sua repatriação, o que foi cumprido pela Justiça Federal do Brasil.
O desfecho dessa história ainda não aconteceu, porque a mãe continua a tentar reverter a situação e buscar a convivência com a filha, mas tem encontrado enormes dificuldades ao enfrentar o sistema judiciário suíço, chegando a relatar até mesmo a suspensão de seu direito de visitas.
Fator da neurodiversidade e necessidades especiais
A avaliação do melhor interesse exige sensibilidade redobrada quando o menor é uma pessoa com deficiência. Nesse caso, a primazia não está na devolução ao seu país de origem, mas na estabilidade e na continuidade do tratamento essencial à sua qualidade de vida.
Como já mencionado, a Convenção de Haia permite que o retorno seja recusado se houver risco grave de a criança ficar numa situação intolerável. Para uma criança com necessidades especiais, essa situação intolerável pode ser configurada pela interrupção de vínculos
terapêuticos ou pela ausência de uma rede de suporte adequada.
Em um caso recente, envolvendo gêmeos diagnosticados com o Transtorno do Espectro Autista (TEA), conforme o REsp 2.053.536/SP, o STJ negou o pedido de repatriação, apesar de o pedido ter ocorrido antes de completar um ano da entrada das crianças no Brasil.
Os gêmeos, nascidos no Canadá, foram levados ao Brasil pela mãe sem o consentimento do pai. A mãe alegou a necessidade de tratamento especializado e imediato para o TEA das crianças, o que ocorreria de forma mais facilitada e célere no Brasil.
O STJ reconheceu que a vulnerabilidade inerente ao TEA exige um ambiente altamente estável e rotinas ininterruptas. A Corte acrescentou que a interrupção abrupta do tratamento já estabelecido no Brasil, para forçar o retorno a um ambiente onde o suporte seria incerto ou inadequado naquele momento, configuraria um dano psíquico e uma situação intolerável para os menores.
Essa decisão sinaliza um avanço fundamental: é importante relativizar a presunção de que o país onde a criança tinha sua residência habitual é o melhor para a manutenção da sua saúde biopsicossocial. Para crianças com necessidades especiais, o melhor lugar para chamar de casa passa a ser aquele que garante mais adequadamente o seu tratamento e estabilidade, e não meramente a última residência legal. Assim, a proteção de sua condição de saúde prevalece sobre a formalidade do retorno.
Caminhos para uma aplicação adequada
Como ficou demonstrado através dos casos concretos apresentados, o princípio do melhor interesse da criança não pode ser interpretado como uma imposição de retorno imediato ao país requerente, sob pena de perpetuar situações de violência e desconsiderar as especificidades de cada caso.
É imperativo sinalizar a necessária humanização da Convenção de Haia de 1980, principalmente no que diz respeito aos seguintes aspectos:
O reconhecimento do risco grave inerente ao desenvolvimento da criança em casos de violência doméstica contra a sua mãe;
A prevalência da integração real da criança no novo país, superando os efeitos da demora processual;
A garantia da escuta qualificada da criança e do adolescente, considerando sua idade e maturidade, para que sua vontade seja um elemento efetivo na promoção do seu bem-estar; e
A priorização da estabilidade terapêutica e do tratamento para crianças com deficiência, sobretudo aquelas que apresentam neurodiversidade.
Em última análise, o direito internacional de família deve evoluir para garantir que o melhor interessa da criança seja residir no ambiente em que, invariavelmente, melhor assegure a sua saúde, estabilidade e segurança, prevalecendo a sua realidade fática sobre a presunção legal.
FONTE: CONJUR