Marco temporal: apetite por terras indígenas ignora pressão internacional
segunda-feira, 12 de junho de 2023, 14h37

Em Itaituba, na região Tapajós, o número de plantações de soja aumentou após a construção de porto graneleiro da Cargill
Imagem: Christian Braga/ClimaInfo - ago.22
O lobby da soja é uma das principais forças operando em Brasília a favor do chamado "marco temporal" para terras indígenas —tese aprovada na semana passada pela Câmara dos Deputados e que volta à pauta de julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) nesta quarta-feira (7).
Dezenas de entidades do setor integram o processo na Corte e atuam localmente para impedir que novas áreas sejam reconhecidas como indígenas, principalmente no Pará e Mato Grosso. Mas o apetite dos sojeiros pelos territórios tradicionais pode ter um reflexo negativo para os negócios no exterior, segundo especialistas.
No oeste do Pará, os sojeiros tentam impedir a criação da terra indígena Planalto Santareno, área reivindicada por povos Munduruku desde 2008, mas cujo processo de identificação se arrasta desde 2018. A região é tomada por fornecedores da gigante norte-americana Cargill, que construiu um porto graneleiro em Santarém em 2003, o que intensificou os casos de grilagem e a disputa de terras para a produção do grão, afetando as comunidades locais.
"O agronegócio mata a nossa fome de viver", afirma Josenildo Munduruku, cacique da aldeia Açaizal, no Planalto Santareno. Ele critica o uso de maquinário pesado e agrotóxicos na monocultura. "As máquinas fazem muito barulho até de noite, e não , e não conseguimos produzir como antes porque o veneno é muito forte e prejudica as nossas terras"
A Justiça Federal determinou em 2018 que a Funai iniciasse os estudos para a demarcação do território, mas o processo não andou durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Procurada, a Cargill respondeu que "não compra grãos produzidos em Terras Indígenas homologadas". No estado que mais produz soja no país, o Mato Grosso, os indígenas também encontram dificuldades para demarcar suas terras em razão da pressão econômica da soja e de outras commodities, como milho, algodão e carne.
Para os ruralistas locais, o marco temporal virou a tábua de salvação, já que a tese determina que uma área só pode ser considerada indígena se os indígenas ocupassem o local na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988. Isso inviabilizaria o retorno de vários povos expulsos nas décadas de 1960 e 1970 de seus territórios.
Na época, o avanço de seringueiros, a abertura de estradas e a invasão de sulistas, estimulada pelo governo militar, obrigou alguns povos a se deslocarem para outras áreas, como o Parque Indígena do Xingu (PIX), regularizado em 1961. As etnias, porém, sempre reivindicaram o retorno a suas terras originárias, onde afirmam estar enterrados seus antepassados.
É o caso do povo Ikpeng, que vive atualmente no parque do Xingu, mas pleiteia a Terra Indígena Roro-Walu, uma área de aproximadamente 270 mil hectares no município de Paranatinga (MT), às margens do rio Jatobá. Os estudos da Funai para identificação do território estão paralisados por decisão judicial a pedido do sindicato dos produtores rurais de Paranatinga. Na mesma região, o pedido de ampliação da Terra Indígena Bakairi (já regularizada) foi travado pela gestão anterior da Funai, apesar de decisão judicial obrigando novos estudos.
Nos dois casos, o marco temporal limitaria o direito dos indígenas a suas terras. Por isso, associações de sojeiros defendem a tese com tanto afinco. "O município [de Paranatinga] tem o potencial para se tornar um dos maiores municípios produtores de soja sem derrubar uma árvore, aproveitando áreas de pastagens. Porém, com a revisão do marco temporal, todo esse potencial pode ser perdido. Como ficam agricultores, trabalhadores, e até a população urbana?", diz o vice-presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (Aprosoja/MT), Lucas Costa Beber, em comunicado publicado pela organização na semana passada.
Mais ao norte de Mato Grosso, em Brasnorte, o pedido de ampliação da TI Menkü também enfrenta pressão dos sojeiros. A identificação do novo limite da terra, que havia sido aprovada pela Funai, foi anulada pelo governo anterior em novembro passado, um ato inédito nas demarcações de terras. Neste ano, fazendas de soja foram certificadas dentro da área reivindicada pelo povo Myky, segundo revelou a Agência Pública.

Plantações de soja pressionam terras indígenas e unidades de conservação em Itaituba, no sudoeste do Pará
Imagem: Christian Braga/ClimaInfo - ago.22.
Lobby organizado
A Aprosoja é quem organiza o lobby do setor. A entidade é a mais atuante das 136 que apresentaram pedidos para participar da ação do marco temporal no STF, segundo levantamento da organização Terra de Direitos.
"As empresas não aparecem diretamente. Enquanto essas associações pressionam Congresso, governo e judiciário, as multinacionais fazem 'greenwashing'", explica Pedro Martins, do Terra de Direitos, indicando que as companhias utilizam estratégias de marketing para se apresentarem como sustentáveis, embora apoiem a articulação dessas entidades. Procurada, a Aprosoja não respondeu à Repórter Brasil.
"O agro hoje é mais organizado que as bancadas da bala e da indústria", diz Juliana de Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental, organização não governamental que acompanha a ação do marco temporal.
O lobby em Brasília conta também com o Instituto Pensar Agropecuária, que é financiado pelas gigantes globais da soja e ligado à Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), mais conhecida com "bancada ruralista". A entidade produziu uma cartilha para orientar deputados sobre a defesa do marco temporal, segundo o The Intercept Brasil.
Em nota, a FPA diz "não ser contrária aos direitos indígenas", e que "é a favor do marco temporal para garantir a segurança jurídica de quem compra uma propriedade privada".
Visão arcaica
Os olhos do mundo estão atentos ao que acontece em Brasília. A eurodeputada do partido Verde da Alemanha, Anna Cavazzini, que também é vice-presidente para relações do Parlamento Europeu com o Brasil, enviou uma carta ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), pedindo para que contenha legislações questionáveis e garanta "os direitos ambientais e indígenas".
"O avanço do agro sobre terras indígenas espanta investimentos, pois há uma demanda internacional por preservação da floresta e esses territórios são as áreas mais preservadas. O que essa parcela do Congresso e de empresários têm é uma visão arcaica de desenvolvimento, que é predatória ao meio ambiente", diz Batista, do ISA.
A FPA respondeu não acreditar em sanções internacionais, no caso de aprovação do marco temporal. Para a entidade, o agronegócio deverá ter prejuízo de R$ 520 bilhões, caso o marco temporal não seja aprovado. A entidade também nega que a agropecuária seja um "vetor relevante de desmatamento".
Para a advogada do ISA, o andamento da ação do marco temporal no STF, em julgamento desde 2017, é uma peça importante para frear o avanço dos sojeiros sobre terras tradicionais que deveriam ser preservadas.
"O que a sociedade espera é que o STF mantenha a pauta e julgue o caso, pois enquanto se espera por isso, os direitos dos povos indígenas estão sendo atacados com um Congresso querendo produzir leis notoriamente inconstitucionais", afirma a advogada.