Leis Anti-Oruam impõem censura prévia e extrapolam competência municipal
quarta-feira, 09 de julho de 2025, 10h45
Quando uma lei municipal proíbe a contratação de um artista pela prefeitura porque ele supostamente promove “apologia ao crime”, ela viola o princípio da eficiência e extrapola as atribuições do Legislativo local. E a norma também é inconstitucional porque institui uma censura prévia, o que é vedado pela Constituição de 1988.
Essa é a conclusão de especialistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico sobre o Projeto de Lei 26/2025, conhecido como PL Anti-Oruam, que foi proposto pela vereadora de São Paulo Amanda Vettorazzo (União Brasil) e influenciou a criação de propostas semelhantes Brasil afora — leis com esse mesmo conteúdo foram aprovadas em Campo Grande, Maceió, Brusque (SC), Porto Velho, Vitória da Conquista (BA), Cuiabá e Vitória.
O projeto de Amanda foi aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Legislação (CCJ) da Câmara paulistana. Além disso, uma emenda que proíbe a prefeitura de contratar artistas que façam apologia ao crime organizado foi adicionada à Lei de Diretrizes Orçamentárias do município para 2026.
O PL ganhou seu apelido por causa do cantor de funk e trap carioca Oruam. Filho de Marcinho VP, apontado pelas autoridades como uma liderança de facção criminosa, o artista já se manifestou a favor da liberdade do pai (preso desde 1996 por tráfico de drogas e homicídio) e enalteceu o padrinho, Elias Maluco, condenado pelo assassinato do jornalista Tim Lopes.
Por causa da dificuldade de comprovar o crime, existem poucas ações penais por apologia no Brasil, segundo os dados levantados pela ConJur. Nesses processos, a maioria dos réus é absolvida por falta de provas ou, no máximo, condenada a penas leves, que não chegam a resultar em reclusão.
Leis desnecessárias
Os defensores do PL Anti-Oruam e de normas semelhantes argumentam que esse tipo de lei é necessário para combater a apologia ao crime e proteger menores de idade. Porém, o criminalista Danilo Cymrot lembra que o Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente já cumprem essa função. Assim, essas iniciativas legislativas ferem o princípio da eficiência, previsto no artigo 37 da Constituição.
Mais do que isso: elas são inconstitucionais por imporem a censura prévia vedada no artigo 5º da Carta. “O que me parece é que, numa espécie de macarthismo, estão fazendo uma lista negra, presumindo, primeiro, que alguns artistas cantam músicas que fazem apologia às drogas e que eles, em um show, irão cantar esse tipo de música”, diz Cymrot. Para o advogado, há um desperdício de tempo e dinheiro público para aprovar algo que não terá qualquer efeito prático.
Ana Clara Ribeiro, advogada especialista em Propriedade Intelectual, acrescenta que a proibição de contratação de artistas com base no conteúdo das obras vai gerar mais trabalho para a administração municipal. “Seria movimentar a máquina pública para fazer uma tarefa que não cabe à administração.”
Além disso, é competência exclusiva da União legislar sobre Direito Penal e Direito Processual, conforme recorda o criminalista Demilson Franco. Foi por essa razão que o Tribunal de Justiça do Espírito Santo declarou inconstitucional uma lei municipal que proibia bailes funk na cidade de Serra (ES), em 2010. “Esse entendimento é compatível com decisões em outros estados. No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro houve decisões semelhantes sobre censura prévia a shows de funk.”
Cada um decide como quer
A professora de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Uerj Ana Paula de Barcellos, por outro lado, não vê inconstitucionalidade nessas leis, nem no PL de São Paulo. Para ela, faz parte do jogo democrático que os representantes eleitos pela população estabeleçam os critérios para orientar a contratação de artistas com dinheiro público.
“O argumento de que isso seria censura prévia não parece consistente, já que o ponto não é proibir a manifestação artística, que poderá continuar livremente”, diz ela.
Segundo Ana Paula, os recursos são escassos e é razoável que uma maioria considere que músicas que enaltecem a criminalidade não devem ser fomentadas por meio de contratações públicas. “A questão a definir é se esses critérios são razoáveis ou não”, afirma a constitucionalista.
O criminalista Daniel Pacheco entende que as normas que proíbem a contratação de artistas não ferem o princípio da eficiência, já que esse tipo de regulamentação não interfere na competência do poder municipal.
“Todas as regras são relativas, têm limites. Da mesma forma que existem os crimes contra a honra, que limitam a liberdade de expressão sem ferir a Constituição, é possível impedir a apologia ou a incitação ao crime sem esbarrar em normas constitucionais.”
Porta aberta para o preconceito
O projeto de Amanda Vettorazzo estabelece que, ao contratar um show, a prefeitura deve impor uma cláusula de não expressão de apologia ao crime e ao uso de drogas. Em caso de descumprimento, o artista perde 100% do valor do contrato. Qualquer pessoa pode denunciar o descumprimento por meio da ouvidoria do município e o auto de infração pode ser lavrado por qualquer órgão competente da prefeitura, pela guarda municipal ou pela Polícia Militar.
As leis de Campo Grande, Brusque, Porto Velho, Vitória da Conquista e Cuiabá são idênticas ao PL da vereadora da capital paulista. A de Maceió cria uma comissão especial dentro de uma das secretarias municipais para a fiscalização e o encaminhamento de denúncias ao Ministério Público. Já o texto da lei de Vitória acrescenta que o infrator não poderá ser contratado pela prefeitura pelos cinco anos seguintes.
Entre outros problemas, o texto do PL paulistano é vago porque não estabelece critérios claros para determinar se um artista pode ou não ser contratado. Sendo assim, ele abre espaço para arbitrariedades, segundo os especialistas, e para o preconceito contra gêneros musicais periféricos, como o funk.
Demilson Franco diz que, por causa disso, há o risco de seletividade penal. Ele destaca que o crime de apologia é configurado pelo dolo específico de exaltação ao crime, e simplesmente relatar a realidade ou usar um eu-lírico não se enquadra nesse conceito.
“A letra de música, isoladamente, não é suficiente para fundamentar uma acusação. Imagine se Freddie Mercury fosse acusado de homicídio por cantar ‘Mama, I just killed a man…’ (‘Mamãe, eu acabei de matar um homem…’, em tradução livre). É preciso ter critérios claros para definir isso e para não deixar margem para interpretações arbitrárias”, diz Ana Clara Ribeiro.
De acordo com Danilo Cymrot, a dificuldade de tipificar a apologia ao crime, muitas vezes, leva à construção de um discurso que aproxima artistas periféricos da associação para o tráfico, crime em que as penas são mais altas. Exemplos recentes são as prisões de MC Poze e do DJ Rennan da Penha. Rennan foi absolvido pelo Superior Tribunal de Justiça por falta de provas.
Para Cymrot, a cultura tem influência na vida das pessoas, mas ela é secundária diante da situação socioeconômica. “Se fosse verdade que as músicas têm esse poder diabólico de levar os jovens para o tráfico, seria fácil. Você proibiria o funk e, de um dia para o outro, acabaria o tráfico de drogas.”
Fonte: Conjur