ARTIGO - Filhos desmentidos e invisíveis: quando a alienação parental como defesa gera autoalienação parental
terça-feira, 27 de abril de 2021, 12h01
Autor: Glicia Barbosa de Mattos Brazil e Letícia Bandeira de Mello da Fonseca Costa | Data de publicação: 26/04/2021
Glicia Barbosa de Mattos Brazil[1]
Letícia Bandeira de Mello da Fonseca Costa[2]
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente artigo trata-se de uma análise baseada em atendimentos psicológicos para emissão de Laudo de Avaliação Psicológica em sede de prova pericial em processo de família, em ação de modificação de cláusula de guarda intentada pelo genitor. A finalidade do trabalho realizado pela expert e estagiária consistiu em avaliar os vínculos afetivos da criança em face dos pais e famílias extensas e indicar se havia vício de manifestação de vontade na fala da criança, quando expressava que gostaria de “ficar com o pai e não mais ser obrigado a morar com a mãe”.
A gravidade do caso foi verificado em audiência especial, onde a criança narrou a ocorrência de abuso sexual praticado por primo materno e em face descrença da mãe no fato narrado pelo filho, este expressou o desejo de não mais continuar residindo com a mãe. Anteriormente, o casal havia acordado guarda compartilhada com divisão equânime de tempo da criança nas residências materna e paterna. Após ouvir o relato da criança e verificar os sentimentos do filho em face da mãe, o Juiz de Família fixou guarda unilateral paterna e convívio materno a ser sugerido pela Psicóloga do Juízo em sede de Avaliação Psicológica, autos encaminhados ao Núcleo de Psicologia a fim de que a expert indicasse a forma de convívio mais adequada entre mãe e filho, o qual não mais queria ver a mãe por estar com raiva da mãe por ela o ter ‘desmentido’ sobre o abuso narrado por ele.
No presente artigo, iremos analisar os efeitos da negação da fala da criança pelos pais, in casu, pela mãe, que se negava a acreditar no filho porque tinha muita hostilidade em face do pai e logo, tudo que o filho dizia não era entendido como queixas do filho- a mãe entendia como se o filho tivesse sido ‘trabalhado’ pelo pai. Ao agir assim , a mãe afastava o filho dela, gerando autoalienação parental. A hipótese daqui surgida e que será analisada é quando o genitor alega sofrer alienação parental e acaba por gerar autoalienação parental, ou seja, alienação parental como defesa e autoalienação parental como consequência. E em termos emocionais, a mais grave das consequências: filhos invisíveis e sem lugar de fala, desacreditados e desprotegidos.
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INTERVENÇÃO DA PSICÓLOGA DO JUÍZO E ESTAGIÁRIA, EM SEDE DE PERÍCIA PSICOLÓGICA NA AÇÃO DE FAMÍLIA
A primeira Avaliação Psicológica da criança teve a finalidade de compreender as questões relacionadas com a dinâmica e vínculos familiares que surgiram após o episódio de abuso. Logo nas primeiras entrevistas com a criança, pode-se perceber que ela se encontrava extremamente agitada, inquieta, com comportamentos e gestos histriônicos, com expressão de raiva quando falava do fato e da mãe, apresentando também baixo rendimento escolar. Depois de um processo lúdico de entrevista livre com a criança, conseguimos entender que a criança apresentava intensa tristeza quando falava da mãe por causa da decepção que ela teve com as atitudes de desproteção da mãe quando ela lhe contou sobre o abuso.
A Psicóloga do Juízo e Estagiária de Psicologia subscritoras do primeiro Laudo de Avaliação Psicológica, tiveram a notícia da dinâmica do abuso sexual sofrido pela criança, narrado pelo menino de então 10 anos de idade durante os atendimentos no Núcleo de Psicologia do Tribunal, onde o mesmo descreveu ter sido vítima de abuso sexual perpetrado pelo primo 10 anos mais velho que ele, abusos iniciados quando a vítima tinha 6 anos de idade e que permaneceram por 2 anos aproximados, com a prática de sexo anal e oral com uso de força e enforcamento e coação do primo mais velho autor em face do primo criança-vitima. Os abusos se davam na residência da avó materna, onde os primos se encontravam com frequência de 3 dias por semana, num quarto que ficava distante da sala da casa.
Ao longo dos atendimentos e conversando com a criança sobre a importancia dela não interromper o convívio com a mãe, o menino declarou que gostaria de residir na casa do pai porque estava ‘decepcionado’ e ‘triste’ com a mãe, que ‘não o protegeu’ quando ele contou para a mãe que foi vítima de abuso sexual pelo primo, filho da tia materna, na casa da avó materna, por meses seguidos. O menino declarou que após alguns abusos, tentou conversar com a mãe e avó materna, que contou para elas que o primo “abusava dele” e a mãe e avó materna pediram a ele “para não contar nada para o pai”, tendo em vista tramitar um processo de guarda entre os genitores e o fato poder ser um gatilho para o pai requerer guarda unilateral e impedir o convívio do filho com a mãe. O menino insistiu em contar para a mãe e avó, as quais mantiveram postura postura de desdizer o fato, de insinuar inclusive que o menino estava sendo induzido pelo pai a narrar o fato, acabando por não proteger o menino-vítima.
Alguns meses depois das tentativas de pedir socorro à mãe, a criança relatou o fato abuso sexual ao pai, que então tomou as devidas medidas, realizando a notícia em sede policial e, portanto, ingressando na rede de apoio e proteção (IML, DECAV, Conselho Tutelar) e na esfera judicial solicitou a guarda unilateral paterna, que foi concedida provisoriamente, após a oitiva da criança em juízo em audiência especial. Ressalta-se que paralelo ao processo de família, se instaurou um processo criminal paralelo onde o Ministério Público denunciou o autor da violência.
Segundo o que foi relatado pela criança no processo de Avaliação Psicológica, a criança contou para a mãe a vivência de abuso, mas foi imediatamente desacreditada pela mesma. A criança narra que a mãe não acreditou no que ela disse, fazendo com que todo o seu discurso e manifestação sobre o trauma fosse silenciado e negado. Durante determinado tempo, a criança foi obrigada a conviver com o seu abusador com o aval da mãe, que apesar de ter escutado o relato da criança, se negou a tomar qualquer atitude que pudesse protegê-la de um segundo abuso.
Após alguns meses, a criança decide relatar ao seu pai o episódio de abuso sexual, expressando seu intenso sofrimento e tristeza relacionado com a falta de proteção da mãe. Logo o pai decidiu realizar a denúncia e tomar as diversas medidas necessárias para proteger a criança, atitude que não foi feita pela mãe. Como consequência da decisão judicial, o convívio materno-filial foi restringido, ocorrendo em finais de semanas alternados, onde a criança passaria algumas horas convivendo com a mãe.
A segunda Avaliação Psicológica, que teve como objetivo analisar o bem-estar emocional e psicológico da criança com esse novo arranjo de convivência e indicar a manutenção ou modificação do arranjo sugerido anteriormente: que foi guarda unilateral paterna e convívio materno em local público, restringido a poucas horas em domingos alternados. Após passados alguns meses da primeira Avaliação Psicológica, a criança contou que a mãe continuava a atacar o pai e a lhe expor a constrangimentos e coações morais pedindo que ele parasse de dizer que foi abusado pelo primo.
O comportamento da mãe configura extrema violência, pois as crianças precisam que o outro respeite quem para elas é figura de proteção, visto que a ameaça de perder essa figura gera instabilidade emocional e desordem psicológica, experiência já vivenciada pela criança em um primeiro momento quando fez a notícia do abuso sexual. Assim, a criança passou a ter comportamento evitativo em face da mãe e declarou em juízo, na ocasião da segunda Avaliação Psicológica,, que não mais queria conviver com a mãe, pois ele era vítima duas vezes: pelo descrédito da mãe, e pelo fato da mãe continuar desqualificando o pai. Ou seja, mesmo tendo havido a decisão de diminuição do convívio materno, a mãe continuava a não entender que era necessário mudar o comportamento em face do filho, que precisava dar voz ao filho e parar de desqualificar o pai, que passou a ser a principal fonte de apego seguro do filho.
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IMPACTOS DO DESMENTIDO NA RELAÇÃO ENTRE MÃE E FILHO
Podemos compreender a vontade da criança de se afastar de sua mãe segundo as diversas teorias psicológicas de abuso sexual infantil, especialmente as que se relacionam com abusos intrafamiliares. Mesmo que a genitora não seja a figura que realizou de fato o ato de violência contra a criança, a falta de suporte e negação apresentado por ela ao receber o relato da criança caracterizam uma segunda forma de violência, que reforça ainda mais o aspecto traumatológico da vivência de abuso.
Segundo a teoria de abuso sexual de Ferenczi (1933/1992), a criança está sujeita a um “duplo choque”, inicialmente marcado pelo ato de violência sexual, e, a posteriori, pela negação e não reconhecimento da experiência por um adulto de confiança. Assim, nesse segundo momento, a criança sofre um novo trauma, descrito por Mendes e Gomes (2017) como sendo “a negação da realidade do evento traumático, não pela própria criança (como acontece na rejeição ou recusa freudianas), mas justamente pelos adultos à sua volta” (p.176). Desta forma, a criança começa a desconfiar dos seus próprios sentidos e percepções, caracterizando o elemento do desmentido descrito na teoria ferencziana.
No caso apresentado, as consequências do desmentido para a criança se tornam claras. Ao relatar o abuso para sua mãe, que representa, nesse primeiro momento, um vínculo parental de segurança e proteção, a criança é surpreendida com a postura de segredo e negação adotada por ela. Com isso, até o momento em que a criança consegue relatar ao pai o ocorrido, a situação traumática do abuso continua, sendo mantida e alimentada pelo segredo e pela proibição de qualquer manifestação que denuncie o ocorrido.
IV. DO DESMENTIDO E CONSEQUENTE POSTURA NEGLIGENTE PARENTAL
Os sentimentos de angústia, agitação, inquietação e raiva vivenciados pela criança na primeira Avaliação, indicam, de forma nítida, os sintomas decorrentes da vivência do abuso sexual e do desmentido, devido a falha da genitora em exercer o seu papel parental frente às necessidades afetivas da criança. É por meio desses sentimentos que podemos compreender a angústia vivida pela criança ao ser obrigada a manter o segredo em relação ao ocorrido, marcado fortemente pelo sofrimento de ser desacreditado por sua mãe.
Podemos perceber a intensa tristeza e decepção da criança quando falava da mãe com base na adoção de um comportamento de negação e desqualificação. Ao ser confrontado com essa postura, a criança vivencia sensações de desamparo e desproteção provindas de uma adulto que representava para ela, até então, segurança e apoio.
Câmara (2012) ressalta a importância da postura adotada pelo adulto que recebe o relato de abuso sexual da criança, destacando a necessidade de promoção de acolhimento e apoio, visto que “a criança aposta todas as suas fichas nele, pois que se encontra em um momento de aflição, e, por este motivo, a este adulto é conferido, conforme vimos, uma posição de onipotência, uma vez que suas palavras poderão trazer amparo à criança.” (p.35) Quando a mãe nega ajudá-la e a rejeita, não valorizando e sustentando seu discurso, o estado idealizado conferido a ela pela criança se rompe.
V. DO DESMENTIDO E ROMPIMENTO DA IDEALIZAÇÃO PARENTAL
Destaca-se esse comportamento como uma forma de abandono afetivo a partir da omissão e falta de continência da mãe, que não consegue sustentar e simbolizar o sofrimento da criança. Com base nisso, podemos interpretar as sensação de decepção e tristeza que a criança sente em face de sua mãe como não sendo somente uma decepção relacionada a uma falta de apoio, e sim o rompimento de uma idealização que marca todas as relações parentais.
Desta forma, conviver com a mãe se torna uma sentença aterrorizante à criança, pois não há mais, no vínculo de filiação, a confiança e segurança que permeia as relações parentais. Ela não se sente mais segura convivendo com um adulto que rompeu, de uma forma tão brusca e inesperada, a onipotência que devia protegê-la, durante a infância, dos cruéis acontecimentos da vida.
V. CALA-TE: PACTO DE SILÊNCIO E INÍCIO DO DESAMOR DO FILHO EM FACE DO ADULTO ABUSADOR PSICOLÓGICO
Entendemos hoje que é por meio do discurso e da expressão que as vítimas de abusos conseguem elaborar o trauma vivido, e diminuir o sofrimento psíquico e os efeitos patogênicos causados pela situação traumática. Franco et al. (2017) descreve que esse trabalho deve ser pautado no processo de ligação dos afetos por meio da criação e elaboração de elementos ainda irrepresentáveis, entendendo, portanto, a vivência traumática como parte ainda desarticulada da trama afetiva.
Quando a criança sofre o desmentido e é obrigada a entrar em um pacto de segredo imposto por sua mãe, o seu discurso e a sua capacidade de manifestação são inibidos e negados, o que impossibilita a elaboração e simbolização psíquica do ocorrido. Assim, ela é obrigada a calar-se, a entrar nesse pacto de silêncio, onde suas palavras e vontades são enterradas pela sua mãe, figura que deveria representar apego e confiança.
Ferraz (2015) escreve sobre o processo de “assassinato” das palavras, que segundo o autor ocorre quando a criança é influenciada e manipulada pelas suas relações familiares, como também pelas situações traumáticas que impossibilitam a expressão verbal. Esse controle, exercido pela genitora, é possível por meio da desigualdade da relação entre adulto e criança, que ocorre por meio da presença de autoridade e influência que permeia a relação parento-filial.
VI. A VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA CRIANÇA ESTÁ NA INVISIBILIDADE
No presente caso, a mãe era figura de cuidado e apego primária da criança. No momento em que a mãe desmentiu o filho, pasou a expô-lo à continuidade do abuso sexual. O efeito da negação da mãe na palavra do filho foi que a mãe passou a ser uma fonte de sofrimento e negação. França, Matos, Novais e Ramos (2017) ressaltam a importância da ética frente a relação de cuidador exercida por pais, “de modo a evitar a sobreposição traumática extravagante da pulsionalidade do adulto sobre a criança (situação que caracteriza, em termos kleinianos, uma relação perversa, calcada inteiramente no modelo da relação de objeto parcial.” (p.156). Vimos que isso ocorreu com a criança no caso descrito acima, pois sua mãe adota uma postura intrusiva e controladora, onde não é dado a ela espaço para sentimentos e comportamentos autênticos, defensivos e reativos.
Essa postura adotada pela mãe caracteriza ato de violência psicológica frente à criança, pois promove depreciamento e desrespeito em relação a ela mediante ameaças, manipulação, intimidação e afastamento da figura paterna, como uma forma de fazer a criança desistir de denunciar o abuso. Segundo o que foi relatado à Psicóloga, a criança continuava a ser pressionada por sua mãe a negar o abuso e mudar seu discurso, mesmo após a denúncia ser feita com o apoio de seu pai, fazendo com que a exploração e intimidação propagada por ela continue a causar danos emocionais e psíquicos a ela. A criança foi e continuou a ser, mesmo após a denúncia feita por ela do abuso sexual coagido pela mãe para negar o abuso que sofreu.
Pode-se entender, do ponto de vista psicológico, que o abuso sexual foi a primeira violência sofrida pela criança e que a negação do abuso sexual foi uma segunda violência, entendida nos termos da lei como violência psicológica contra criança e adolescente. A lei 13.431/17 enumerou no artigo 4º todas as formas de violência e consta do rol que a alienação parental é uma espécie dentre as outras 2 espécies de violência psicológica. Ou seja, o menino foi vítima reiteradamente de várias formas de violência: sexual, psicológica pelo desmentido da mãe, psicológica pela alienação parental praticada pela mãe, psicológica pela autoalienação[3] praticada pela mãe, pois quando a mãe gera no filho sentimentos evitativos do contato, acaba por violentar o filho, retirando dele a necessidade de ser cuidado pela mãe.
A alienação parental tem natureza jurídica de abuso moral e violência psicológica contra criança e adolescente, respectivamente, nos termos dos artigos 3º da Lei 12318/10[4] e 4º da Lei 13.431/17[5], uma vez que retira a criança do lugar de sujeito, retirando da criança o que faz dela um sujeito: o lugar de falar o que pensa e sente a respeito de qualquer decisão que diga respeito a ela.
VII. DA ALIENAÇÃO PARENTAL PARA O DESMENTIDO E AUTOALIENAÇÃO PARENTAL:
Após tentativa da mãe de suprimir o ocorrido e fazer com que a criança mantenha o abuso em segredo, ela decide relatar o abuso ao seu pai, que imediatamente tomou medidas para proteger a criança e fez a denúncia. Atualmente, o convívio materno-filial está suspenso e a criança reside com o pai, que detém a guarda unilateral.
Podemos compreender a postura adotada pela figura materna como uma nova violência psicológica para a criança, devido ao seu caráter nocivo e abusador, pois retira da criança a sua condição de sujeito, fazendo com que ela se sinta coagida moralmente a tomar certas atitudes, que no caso narrado acima, eram de negar o abuso e se afastar do pai. Essa prática se caracteriza como alienação parental, uma das violências psicológicas descritas no Estatuto da Criança e do Adolescente, pautadas na demonstração de hostilidade dentro do ambiente familiar, que tem como objetivo de quem a pratica, afastar ou comprometer a relação da criança para com uma das suas figuras parentais. Sua finalidade é, então, gerar dificuldades na criação ou manutenção do vínculo de afeto entre criança e outras figuras familiares, interferindo de forma brusca e violenta, na concepção de mundo da criança, nas esferas físicas, psíquicas e emocionais.
Como relatado pela criança na segunda entrevista, nos encontros entre mãe e criança que ocorriam aos domingos no clube, a genitora continuava a expor à criança a constrangimentos e coações morais, buscando promover o afastamento entre a criança e seu pai. Nesse caso em específico, como a alienação parental foi praticada pelo genitor que a criança tem menos afeto, ou seja, com quem a criança é menos leal, ela demonstrou comportamento defensivo e de rejeição direcionado aos “ataques” feitos ao pai, que se tornou a figura de maior vínculo.
A autoalienação parental praticada pela mãe, somente prejudicou a relação entre ela e a criança pois faz com que a mesma a veja como uma figura ameaçadora, o que reforça ainda mais o trauma e a falta de proteção vivenciados durante o desmentido. A autoalienação muitas vezes acontece sem a percepção do genitor que a pratica, mas faz com que a criança entenda a convivência com a mãe como algo ameaçador e de intenso sofrimento. Barbeiro (2020) explica que:
[...] a autoalienação parental se verifica quando o genitor que se diz alienado é quem provoca ou contribui para a situação de alienação. Na maior parte dos casos, a situação é a de recusa do filho em conviver com o(a) genitor(a) e, nesse caso, essa recusa possui uma justificativa legítima sob a perspectiva do infante, não sendo resultado de uma prática alienadora do outro genitor. Significa dizer que a repulsa da criança ou adolescente em conviver com o genitor “a” decorre do próprio comportamento do genitor “a” e não de uma conduta alienadora do genitor “b”. (p.92)
Desta forma, podemos concluir que a suspensão da convivência foi algo estruturante para a criança, que precisa se sentir segura e protegida para elaborar as situações traumáticas vivenciadas, mesmo que signifique um afastamento temporário da figura materna. Nos moldes sugeridos pela expert e estagiária subscritoras no Laudo de Avaliação Psicológica: “Pelo exposto, considerando-se a necessidade de se resguardar a integridade psicológica da criança em tela, opina-se pela guarda unilateral paterna definitivamente, e o fim do processo, de modo que a sentença seja terapêutica para a criança, que dê legitimidade ao discurso da criança, que precisa ser creditado pela Justiça, porque foi muito desacreditado pela mãe, e isso gerou prejuízos emocionais graves à criança, já expostos no item 3.4. do presente Laudo e Avaliação Psicológica. A criança encontra-se, por ora, estável, mas não se sabe qual o alcance dos prejuízos emocionais da certeza de ter uma mãe que não a protegeu quando ele mais precisou.”
VII. DA NÃO-PALAVRA À PALAVRA:
Algum tempo depois o processo retorna ao Núcleo de Psicologia para uma nova reavaliação. O objetivo deste novo atendimento foi promover o acompanhamento da criança, principalmente devido à decisão de suspensão da convivência materna.
Nesse segundo encontro, a criança apresentou uma postura muito mais tranquila e estável do ponto de vista psicológico, com aparência física completamente diferente, com semblante calmo e sereno. Como determinado pelo Juízo, a criança encontra-se em terapia, e relata à Psicóloga que esse trabalho tem lhe ajudado a elaborar o ocorrido e a compreender os sentimentos que tem hoje em relação a sua mãe. Segundo Toporosi (2015), é por meio da construção de um vínculo de confiança com o terapeuta que a criança vai se sentir acolhida e ouvida, segura para demonstrar, de uma forma única e simbólica a sua vivência traumática e o seu sofrimento.
Desta forma, o analista desempenha uma função de extrema importância, funcionando como uma matriz para atribuir sentido aos pensamentos e sentimentos desorganizados da criança, para que ela “possa processar aquilo que ficou escondido para ir reintegrando-o ao seu funcionamento psíquico” (TOPOROSI, 2015). A partir disso, entendemos que a criança encontra-se em um momento de elaboração e simbolização psíquica, tanto so abuso sexual como das questões relacionadas às atitudes e posturas tomadas por sua mãe. Ressalta-se, com isso, a importância relatada por Kupermann (2008) ao acolhimento da criança por intermédio da sua própria linguagem, como uma forma de promover a elaboração e integração dos acontecimentos e do self.
IX. CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Vemos na prática os efeitos danosos da alienação parental: os filhos se tornam invisíveis diante dos pais, que por sentirem raiva um em face do outro, acabam por desmentir o filho e a hostilizar o filho, sem fazer o exercício de parar pra pensar se o filho está pedindo socorro. A prática forense evidencia que a alienação parental adoece as famílias, acaba por gerar distorção na percepção de quem acredita estar sendo vítima de alienação parental e consequentemente, acaba por gerar conclusões equivocadas.
Se pudéssemos aqui aconselhar os pais em conflito: que se esforcem para separar as questões conjugais das questões parentais, que acolham seus filhos, que não permitam que o filho fique desprotegido pela hostilizada comumente associada ao divórcio. Pode ser que o filho seja um ‘pombo correio’ do outro genitor, acontece com frequência quando há alienação parental instalada- e ainda assim, o filho precisa ser blindado da hostilidade do genitor alienado, que muitas vezes descarrega no filho aquilo que deveria conversar com o genitor alienador. Mas também acontece a negligência do olhar dos pais em face do filho, pois os pais se atacam mutuamente e o filho fica sem lugar de expressão, fica sem palavras, sem credibilidade, sem ser escutado com amor.
Ressaltamos aqui a importância da intervenção judicial: sentença terapêutica- aquela que cuida do bem estar da criança ou adolescente, o trabalho da equipe técnica- que intervém dando a oportunidade da criança se expressar livremente e ser acolhida na sua dor.
A importância de uma escuta fidedigna e digna é que isso constitui uma barreira à continuidade do trauma vivido pela criança, o qual só conseguiu ser rompido quando a criança foi escutada com empatia e amor. Escuta amorosa possibilita a quebra do segredo familiar, promove intervenções da esfera da rede de atendimento que são fundamentais para a criança e viabiliza o processo terapêutico da vítima. É por meio da junção das intervenções de todos os operadores do processo e da manutenção do trabalho terapêutico que a criança irá conseguir ressignificar o trauma vivido e simbolizar o seu sofrimento, como também.
No presente caso, restabelecer, a manutenção do processo terapêutico, associado a medidas protetivas judiciais, como por exemplo advertência ao genitor abusador psicológico e restrição do convívio deste com o filho, que se dará uma retomada do relação da criança com sua mãe, de um jeito que talvez nunca possa ser normal ou ideal, mas do jeito possível.
Parafraseando o poeta Rubem Alves: “Uma das missões da poesia é colocar palavras no lugar da dor. Não para que a dor termine, mas para que ela seja transfigurada pela beleza.
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[1] Psicóloga do Tribunal de Justiça do Estado do RJ, Membro do Fórum de Direito de Família e Sucessões da Escola de Magistratura do Estado do RJ, Bacharel em Direito, Tutora da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura, Membro e Conferencista do IBDFAM, Tutora do Curso de Alienação Parental e Convívio Familiar no Pós COVID-19 da Escola de Magistratura do Estado do RJ, Coordenadora do Curso de Extensão em Alienação Parental da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro- PUC/RJ, Entrevistadora Forense capacitada no método de Depoimento Especial pelo Conselho Nacional de Justiça, Pós-Graduada em Processo Civil pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro e em Recursos Humanos pela PUC/RJ, Autora de artigos relacionados à interface Psicologia/Direito. Professora de Psicologia Aplicada ao Direito de Família, Infância e Vulnerabilidades para Cursos de Pós-Graduação e Extensão, das seguintes instituições: Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro- EMERJ, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro- PUC RJ, Fundação Escola do Ensino Superior do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro- FEMPERJ, Fundação Escola da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro- FESUDEPERJ, Instituto Nacional de Direito de Família- IBDFAM, Associação dos Advogados de São Paulo- AASP, Escola Superior de Administração Pública do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro- ESAJ, Curso Triade RJ, Universidade Cândido Mendes.
[2] Estudante de graduação no Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Experiência profissional inclui estágio e atuação no Departamento de Saúde do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Núcleo de Psicologia das Varas de Família da Comarca da Capital do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, e Iniciação Científica no Laboratório de Família e Casal da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro- PUC/RJ.
[3] Conceito descrito em MADALENO, Ana Carolina Carpes; MADALENO, Rolf. Síndrome da alienação parental: importância da detecção; aspectos legais e processuais. 5. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 162
[4] Art. 3o A prática de ato de alienação parental fere direito fundamental da criança ou do adolescente de convivência familiar saudável, prejudica a realização de afeto nas relações com genitor e com o grupo familiar, constitui abuso moral contra a criança ou o adolescente e descumprimento dos deveres inerentes à autoridade parental ou decorrentes de tutela ou guarda. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12318.htm, acesso em 01.2.21.
[5] Art. 4º Para os efeitos desta Lei, sem prejuízo da tipificação das condutas criminosas, são formas de violência: (...)
II - violência psicológica:
b) o ato de alienação parental, assim entendido como a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou por quem os tenha sob sua autoridade, guarda ou vigilância, que leve ao repúdio de genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculo com este; Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13431.htm, acesso em 01.2.21.
FONTE: IBDFAM
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