Crianças e adolescentes são pontos sensíveis no co
Próxima fronteira do combate às facções: interoperabilidade para salvar infâncias
quarta-feira, 17 de dezembro de 2025, 14h15
Agostinho Gomes Cascardo Junior
17 de dezembro de 2025, 7h02
Operações de retomada territorial contra facções produzem efeitos imediatos: prisões, apreensões, presença ostensiva e redução momentânea de confrontos. O desafio real, porém, aparece em seguida. Retomar o território é uma etapa; a fase de estabilização territorial demanda a implementação contínua de serviços públicos essenciais e mecanismos de proteção social voltados à comunidade residente, configurando um desafio operacional e institucional em uma etapa de maior complexidade. O Projeto Território Seguro nasce dessa leitura estratégica: a vitória do Estado não se resume à ocupação, mas à permanência efetiva — a capacidade de substituir a governança do crime por uma presença pública contínua, articulada e protetiva.
Tomaz Silva/Agência Brasil

Esse “novo paradigma” exige que segurança pública deixe de operar como somatório de ações isoladas. A experiência mostra que uma guerra infinita não se sustenta. A estratégia de apenas contar com a polícia na rua não alcança os resultados esperados a longo prazo. Inteligência financeira, controle de armas e política social robusta não são acessórios: são partes do mesmo arranjo. Por isso, a integração precisa ser institucionalizada, com protocolos duradouros, para que a eficácia não dependa de relações pessoais ou de conjunturas de gestão.
Um dos pontos mais sensíveis do Território Seguro é a infância. Em áreas dominadas por facções, crianças e adolescentes convivem com riscos sistêmicos: violência armada, evasão escolar, abandono familiar e recrutamento por organizações criminosas. Nesse contexto, iniciativas como a estratégia “Crescer em Paz” reconhecem explicitamente a exposição de menores a violência, exploração e uso de drogas como eixo prioritário de intervenção, sobretudo quando há crime organizado e armas [1].
Como transformar esse diagnóstico em ação preventiva, e não apenas reativa? A proposta apresentada é integrar, de forma segura e governada, o Sistema Nacional de Informações Criminais (Sinic) e o Sistema de Informação para a Infância e Adolescência — módulo Conselho Tutelar (Sipia-CT), modelando um Sistema de Alerta Preditivo (Early Warning System, EWS). A ideia é converter um “fato da persecução penal” — o indiciamento ou a prisão de um genitor ou responsável — em um “gatilho de risco social”, capaz de acionar antecipadamente a rede de proteção em virtude do potencial risco social ao qual é submetida a criança em tais situações.
Sinic é o Sistema Nacional de Informações Criminais, criado para atender a determinação legal do artigo 809 do CPP. Tem como função principal coordenar e unificar informações criminais de todo o Brasil.
O Sistema de Informação para a Infância e Adolescência — Módulo Conselho Tutelar (Sipia-CT), por sua vez, foi criado para operacionalizar os princípios e diretrizes estabelecidos pelo ECA, tornado obrigatório em todo o território nacional pela Resolução 231/2022 — Conanda e gerido pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC).
Por que usar a informação criminal como trigger?
Porque a prisão de um responsável produz um choque social que, muitas vezes, não é absorvido pela família nem pela comunidade. O risco não é apenas material (queda de renda, moradia, alimentação), mas também relacional: quebra de rotina, estresse, estigma, ruptura de vínculos e aumento de exposição da criança e adolescente à todo tipo de exploração.
O EWS reconhece que o encarceramento parental é um marcador de vulnerabilidade e cria uma “janela de oportunidade” para intervenção preventiva. É importante frisar que o alvo não é “punir a família”, mas sim impedir que a criança arque com o preço invisível de uma decisão penal dirigida ao adulto.
O ganho operacional é mudar o timing da atuação do conselho tutelar. Hoje, os CT costumam ser acionados quando o problema já apareceu: reiteração de faltas e evasão escolar após esgotados recursos pedagógicos, denúncias de maus-tratos, episódios graves. Com o alerta, a lógica se inverte: a rede recebe uma notificação qualificada e pode iniciar busca ativa, orientação, encaminhamento a serviços de saúde e assistência social, e acompanhamento da frequência escolar, conforme medidas protetivas previstas no ECA.
A base jurídica da intervenção, se bem calibrada, é sólida. O princípio da proteção integral (artigo 227 da Constituição e artigo 1º do ECA) impõe prioridade absoluta à infância. O ECA prevê serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial para crianças e adolescentes cujos pais ou responsáveis estejam presos em regime fechado. A proposta também dialoga com normas que reforçam a rede de proteção em situações de encarceramento parental e vulnerabilidade, inclusive no plano local quando existente.
Ao mesmo tempo, há limites claros
A destituição do poder familiar é medida grave e excepcional. A mera condenação criminal não implica automaticamente a perda ou destituição do poder familiar [2]; a exceção qualificada envolve crimes dolosos, sujeitos à reclusão, cometidos contra o próprio filho, outro descendente ou contra o outro titular do mesmo poder familiar [3]. Logo, o EWS não deve nascer como instrumento de destituição, e sim como mecanismo de assistência, apoio psicossocial e de monitoramento preventivo (inclusive escolar), preservando a finalidade protetiva como eixo.
Esse cuidado é ainda mais importante porque a maior parte da violência contra crianças acontece onde o Estado menos enxerga: dentro de casa. O documento lembra que denúncias e estatísticas indicam predominância de violência doméstica e abuso de confiança, e que a violência sexual, em grande parte, é cometida por pessoas do convívio familiar, com baixa participação de desconhecidos. Assim, mapear famílias sob estresse extremo (como o encarceramento de um responsável) não serve apenas para reduzir risco de recrutamento por facções; pode também abrir uma chance de avaliar, com prudência e protocolos, a integridade do ambiente familiar — onde a violação muitas vezes é silenciosa e persistente.
O desafio, porém, é fazer isso sem violar direitos e sem criar vigilância indiscriminada. A LGPD entra como requisito de projeto. O Sipia-CT lida com dados pessoais e sensíveis de crianças e adolescentes, exigindo proteção máxima e tratamento orientado ao melhor interesse do menor. Para órgãos públicos, o tratamento pode se apoiar em bases legais como cumprimento de obrigação legal e execução de políticas públicas, desde que a finalidade seja delimitada, proporcional e auditável. O desenho precisa, ainda, respeitar vedações a mecanismos genéricos e indiscriminados de monitoramento.
Na prática, isso significa desenhar uma integração por “triggers de evento” e não por “acesso amplo”. O Sipia-CT não necessita ter acesso ao histórico criminal completo do genitor. Tampouco o Sinic deve integrar dados de crianças e adolescentes, pois destina-se à colação de informações criminais.
O fluxo de dados deve ser unidirecional do Sinic para o Sipia-CT apenas, a fim de resguardar o sigilo dos registros dos conselhos tutelares perante terceiros estabelecido pelo artigo 21, § 4º, da Resolução 231/2022-Conanda.
Uma API segura e rastreável transmite apenas um payload mínimo [4], suficiente para o Conselho Tutelar iniciar a busca ativa: identificação do genitor, identificação do filho/dependente, data de nascimento, endereço (para definir jurisdição) e uma classificação genérica do evento (por exemplo, prisão/indiciamento em contexto de crime violento ou associado a facções), não obstante os dados de prisões e indiciamentos sejam públicos por ocorrerem na fase ostensiva das investigações. Essa minimização reduz risco de estigma, limita exposição de dados e preserva o foco protetivo.
Em síntese, haveria um nível de “risco crítico” (jurídico) para casos que se enquadram na exceção do ECA sobre crimes dolosos contra o filho ou contra o outro genitor, exigindo comunicação imediata ao Ministério Público; e um nível de “alto risco social” (protetivo) para prisões/condenações em regime fechado por crimes violentos ou associados a facções, que demandam atendimento psicossocial e acompanhamento preventivo. O valor do EWS está justamente em alinhar o dado criminal a uma resposta social proporcional, evitando tanto omissão quanto excesso.
Há, contudo, uma fragilidade que pode comprometer tudo: a qualidade do dado na origem. O Sinic possui estrutura para registrar informações relevantes, inclusive o vínculo parental, mas o sucesso do alerta depende de preenchimento obrigatório e preciso por quem registra o fato. Sem vínculo parental, não há alerta; sem endereço correto, não há definição de jurisdição; sem padronização, não há política pública baseada em evidências. Por isso, a proposta insiste na institucionalização do fluxo por meio de um ato formal de governança — como uma Portaria Conjunta Interministerial (MJSP/MDHC) — que estabeleça regras, segurança, auditoria e obrigação operacional de alimentar os campos essenciais.
Institucionalizar é necessário, mas não suficiente
A integração muda rotinas e exige capacitação. Conselheiros tutelares precisam interpretar corretamente o dado criminal (por exemplo, distinguir indiciamento, prisão preventiva e condenação) e acionar protocolos de atendimento psicossocial e articulação de rede. Do lado das polícias e da inteligência, é preciso compreender que registrar o vínculo parental não é detalhe administrativo: é um insumo crítico para salvar crianças do ciclo de violência e vulnerabilidade. Quando o registro é bem alimentado, o Estado não apenas “fecha” um procedimento; ele “abre” uma rede de cuidado.
Como caminho de implementação, propõe-se um piloto: um mutirão de “inteligência social” na Zona Oeste de Natal (RN), em área priorizada pelo Território Seguro, envolvendo Conselho Tutelar e instituições locais. A proposta é iniciar com alimentação concentrada do vínculo parental no Sinic para casos relevantes, bem como emular a transferência para o Sipia-CT, abrir atendimentos qualificados e acionar busca ativa e rede de serviços. Um elemento adicional — cruzar os casos com indicadores de frequência escolar — funciona como qualificador de risco e permite priorização: onde a prisão do responsável coincide com sinais de desconexão escolar, a intervenção tende a ser mais urgente.
Quanto ao custo, a proposta pode ser sustentável por aproveitar infraestrutura federal de interoperabilidade, alinhada a esforços de integração de dados e ao marco de governo digital. Em vez de criar estruturas paralelas, o foco é converter sistemas já existentes em um fluxo que produza eficiência administrativa e impacto social direto. A métrica, aqui, não é apenas economia orçamentária: é redução de evasão, proteção contra exploração, prevenção de recrutamento e fortalecimento do vínculo comunitário com o Estado.
Em última análise, integrar Sinic e Sipia-CT por um EWS é uma mudança doutrinária: a inteligência de segurança pública alimenta a inteligência social. A prisão, que hoje encerra um ciclo processual, passa a abrir um ciclo protetivo. O sucesso, porém, depende de três compromissos simultâneos: governança formal, minimização de dados e atuação efetiva em campo. Sem esses pilares, a integração limita-se somente à tecnologia; apoiados nesses pilares, transforma-se em política pública de proteção. Em territórios conflagrados, esse passo pode ser decisivo para que o Estado não seja apenas o ator que entra, prende e sai, mas o ator que entra, protege e permanece.
[1] Investing in child protection as a priority: Brazil launches the first…, acessado aqui.
[2] Nova lei garante atendimento médico e psicossocial a filhos de vítimas de violência ou de presos – IBDFAM, acessado aqui.
[3] Perda do poder familiar pela violação dos deveres e responsabilidades dos pais — TJDFT, acessado aqui.
[4] Os dados podem ser carregados diretamente no registro do tipo “Informação Externa” ou “Comunicado de Violação”, este no caso de violação concreta, consoante os itens 10.1 e 10.2 do Manual do SIPIA-CT 2025.
FONTE:CONJUR