CONJUR: Lei do abandono afetivo: do suporte aos filhos à mitigação da desigualdade de gênero
segunda-feira, 01 de dezembro de 2025, 13h35
Como um avanço à proteção integral da criança e do adolescente e também para a mitigação da desigualdade de gênero, foi sancionada no dia 28 de outubro de 2025 a Lei 15.240, que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para caracterizar o abandono afetivo como ilícito civil.
Com a alteração, o artigo 4º do ECA, que prevê que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” e até então possuía um único parágrafo (acerca da garantia de prioridade), agora passa a possuir outros dois parágrafos que dispõem sobre a assistência afetiva.
A atualização legislativa incluiu que também compete aos pais “prestar aos filhos assistência afetiva, por meio de convívio ou de visitação periódica, que permita o acompanhamento da formação psicológica, moral e social da pessoa em desenvolvimento”, e caracteriza como conduta ilícita, sujeita a reparação de danos, a omissão que ofenda direito fundamental da criança e do adolescente, incluindo o abandono afetivo.
Há muito vinha se discutindo sobre o abandono afetivo, cujo tema já tinha ganhado crescente relevância no âmbito do Direito de Família, seja em razão da assistência e suporte necessários aos filhos, seja em razão da divisão das responsabilidades parentais, que predominantemente recaem sobre as mulheres, contribuindo para a desigualdade de gênero na sociedade contemporânea. Contudo, embora ainda houvessem algumas divergências jurisprudenciais e doutrinárias, não restava dúvida acerca dos danos causados.
Sobre o malefício do abandono afetivo para as crianças e adolescentes, Amazonas explica que uma criança que fora abandonada por um dos genitores pode sofrer diversas sequelas psicológicas, as quais irão comprometer seu desenvolvimento, uma vez que a neurociência já comprovou que a presença dos pais são imprescindíveis para o desenvolvimento emocional, social, cognitivo e intelectual de uma criança ou adolescente.
Elementos imateriais
Embora permeada de discussões em razão do uso do termo “afetivo” para a seara do Direito, não se trata do afeto em forma de sentimento, de amor. Isso porque, como explica o ministro Paulo Dias de Moura Ribeiro, “o afeto, de índole moral, privada e existencial, por si só, não pode ser considerado propriamente uma obrigação jurídica, na medida em que sentimentos e emoções não podem ser impostos ou exigidos a ninguém, nem sequer pela legislação”. No âmbito do abandono afetivo, a doutrina interpreta a ausência de afeto como a falta de cuidado, educação, presença, imposição de limites e responsabilidade parental, como observa Pereira.
A ministra Nancy Andrighi, anteriormente à lei, ao julgar o tema na decisão do Recurso Especial nº 1.159.242 do STJ, versou que, além das necessidades básicas para a manutenção da vida, como alimentação, abrigo e saúde, o ser humano também precisa de outros elementos, geralmente imateriais, essenciais para seu desenvolvimento adequado, como educação, lazer e regras de conduta.
Na decisão, foi destacada a importância fundamental do cuidado e da atenção dedicados aos filhos no processo educacional atualmente vigente. A ideia de que “amar é faculdade, cuidar é dever” se tornou amplamente conhecida, deixando claro que o que está em questão não é o amor, mas o descumprimento do dever de cuidar. Isso porque o cuidado é uma obrigação legal, originária da função parental e derivada da liberdade das pessoas de gerar ou adotar filhos, e que é fundamental para o desenvolvimento adequado da criança e do adolescente.
Pedagogia
Atualmente, com a recente lei, a alteração legislativa prevê o que se entende por assistência afetiva, considerando-a como orientação quanto às principais escolhas e oportunidades profissionais, educacionais e culturais; solidariedade e apoio nos momentos de intenso sofrimento ou de dificuldade; presença física espontaneamente solicitada pela criança ou adolescente quando possível de ser atendida.
Ou seja, basicamente o que fora conceituado por Morais e Pimentel, que definiram o abandono afetivo como o “distanciamento do convívio com seus filhos, mesmo que as obrigações alimentícias estejam em dia, que por motivos torpes, conscientes ou inconscientes, priva-os da convivência e do cuidado afetuoso”.
Pode-se dizer que caracterizar o abandono afetivo como ato ilícito possui caráter pedagógico também para a divisão das responsabilidades parentais, o que acaba por ser uma ferramenta para a mitigação da desigualdade de gênero, uma vez que, em razão dos traços do sistema patriarcal existentes na sociedade contemporânea brasileira, ainda é comum atribuir à mulher a responsabilidade pelos cuidados dos filhos.
Um exemplo disso é que, embora a regra da guarda compartilhada exista há mais de uma década, as estatísticas apuradas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística demonstram que, em 2021, 6.022 filhos tiveram a guarda atribuída ao pai, enquanto as atribuídas às mães totalizaram o montante de 90.825, e a guarda compartilhada foi de 57.856. Em 2020 a proporção desigual era similar: a guarda de 6.601 filhos foi atribuída ao pai, 80.315 à mãe e 43.934 guardas compartilhadas.
Em que pese o aumento da guarda compartilhada, Fonseca e Carrieri apontam que ainda é comum que os pais não cumpram com seus deveres, o que pode resultar em falta de convivência, amparo afetivo, moral e psíquico para a criança, isso porque a atribuição da guarda compartilhada aos pais não quer dizer que o pai, de fato, assuma as responsabilidades dos filhos, pois a cultura patriarcal persiste. Neste sentido, a pesquisa realizada pela Revista Retratos, do IBGE, apurou que, em muitos casos de guarda compartilhada, há pais que não exercem de fato tal responsabilidade, e há relatos de que o compartilhamento da guarda fica “só no papel”.
Ressalta-se que, em relação a ausência paterna, à luz da dignidade humana, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 confiou à família o papel de garantir o direito à convivência familiar de crianças e adolescentes (artigo227). Essa nova perspectiva constitucional marcou o reconhecimento da importância dos laços afetivos e da solidariedade entre os membros familiares, promovendo também a igualdade de gênero, que nesse contexto se traduz pela divisão do exercício das responsabilidades parentais, minimizando, sobretudo, a sobrecarga gerada para a mãe.
Conclusão
Sendo assim, responsabilizar civilmente aquele que não cumpre com a assistência afetiva ao filho representa não apenas a aplicação de uma sanção jurídica, mas também a reafirmação do dever legal de cuidado, proteção e presença na vida da criança e do adolescente. A responsabilização civil possui finalidade reparatória e pedagógica, na medida em que busca compensar os danos causados ao desenvolvimento psíquico e emocional do filho, ao mesmo tempo em que reforça a importância do exercício responsável da parentalidade, contribuindo para a efetivação dos direitos fundamentais da criança e para a construção de uma sociedade mais justa e solidária.
FONTE: CONJUR