MIGALHAS: Empréstimo consignado a crianças e adolescentes e a penhora do futuro
terça-feira, 25 de novembro de 2025, 10h57
O CC, lei 10.406/22, em seu art. 588, dispõe que, acerca do contrato de mútuo, aquele que envolve o empréstimo de coisa fungíveis, tipicamente usado para o empréstimo de dinheiro, uma vez feito a pessoa menor, sem prévia autorização daquele sob cuja guarda estiver, não poderá ser reavido nem do mutuário, nem de seus fiadores. A regra referida tem manifesta índole protetiva de alguém que, por inexperiência, pode vir a sofrer marcante prejuízo econômico, na medida em que realize uma operação dessa natureza sem estar assessorado de uma pessoa maior, que lhe deve a guarda.
Um outro olhar poderia entender também que, diante da pena de perdimento do direito de ressarcimento por parte do mutuante, a mensagem deixada pelo legislador é que o mútuo com menores não deve ser fomentado, devendo ser a exceção. Porém, em mais um capítulo de grave descaso do INSS - instituto Nacional do Seguro Social, crianças e adolescentes pobres, alguns portadores de síndromes e patologias, tiveram mútuos feneratícios, empréstimos de dinheiro, autorizados pelo órgão.
Tramita já de alguns meses uma CPMI - Comissão Parlamentar Mista de Inquérito,1 composta por membros do Congresso Nacional, instaurada para apurar as responsabilidades de pessoas físicas e jurídicas ante as fraudes cometidas em folhas de pagamentos de aposentados e pensionistas do INSS. Milhares sofreram descontos ilegais, por anos, em prol de associações variadas, e sem autorização. No caso, estima-se, no mínimo, uma fraude em torno de seis bilhões de reais e tudo com o aval do INSS, ou, no mínimo, da sua ampla omissão fiscalizatória, ao ponto de ser um fato que se iniciou na gestão presidencial anterior, tendo sido ampliada na atual. Nesse cenário, tem-se como fundo o chamado crédito consignado, aquele empréstimo tomado pelo beneficiário do INSS, e que passa a ser desconto mensalmente do seu benefício. No caso, junto com o desconto do mútuo, era embutida uma mensalidade associativa não autorizada. Entre a maioria dos afetados, estão os idosos, aposentados em razão da idade, e aqueles também por motivos de doença, pessoas hipervulneráveis.
Por outro lado, recentemente, um outro cenário chama muito atenção, e que também tem relação com o famigerado crédito consignado. Muitas vozes vão se levantar para a defesa da referida operação creditícia, em face das baixas taxas de juros envolvidas, num comparativo com outras linhas como cartão de crédito, cheque especial, etc. Ocorre que as ditas facilidades do crédito consignado têm gerado um cenário de pessoas dependentes de crédito, que buscam neste um complemento ao baixo salário ou reduzida aposentadoria. Contudo, uma vez contraído o empréstimo, estas são obrigadas e restituir valor tomado acrescido de juros e outros encargos.
O Brasil não é um país de educação formal exemplar, e muito menos um Estado que fomenta o conhecimento da população em economia básica, ao ponto de que a grande parte da população não tem expertise alguma e visão de risco ao assumir responsabilidades creditícias, e isso faz com que tenhamos taxas muito elevadas de pessoas superendividadas.2 Em outubro de 2025, 79,5% das famílias brasileiras estavam endividadas e 30,5% atrasaram parcelas de dívidas, conforme indicado pela CNC - Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, um recorde histórico.
Para piorar, esses cenários que nos tornam uma nação de devedores, ao que parece, não reconhecem limites morais nem éticos, vindo a atingir crianças e adolescentes, empobrecidos e, muitos deles, doentes ou portadores de síndromes variadas, que recebem benefícios do INSS.
Diz a CF/88, em seu art. 227, que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Ou seja, há uma responsabilidade solidária em torno da proteção das gerações futuras, considerando-se a vulnerabilidade delas e o quanto estas necessitam de amparo para desenvolverem a personalidade de forma sadia.
Com fulcro a tornar visíveis e concretos os direitos previstos na CF/88, foi editado o Estatuto da Crianças e do Adolescente, lei 8.0869/90, que possui uma série de valores e princípios explícitos. Destaca-se, por exemplo, o art. 3, que dispõe que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, assegurando-se-lhes todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. O art. 5º, por sua vez, indica que nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Entre nós, temos também o decreto 99.710/90, que promulgou a Convenção da ONU de 1989 sobre os Direitos da Criança que entrou em vigor internacional em 2/9/1990, e que foi ratificada pelo Brasil em 24/9/1990, tendo a mesma entrado em vigor para o Brasil em 23/10/1990. Ou seja, há um compromisso internacional do Brasil perante os Estados-partes que ratificaram a referida convenção no sentido de conferir efetividade aos direitos garantidos à crianças e adolescentes ali previstos.
Contudo, não obstante esse conjunto de premissas legais e morais de alta relevância para a formação da nossa sociedade, o Estado, o sistema financeiros e os pais, ou guardiães desses menores, passaram a envidar estes, gerando débitos invencíveis para vida adulta. Contrariando as normas acima ressaltadas, surge a informação de que o INSS liberou 12 bilhões de reais em empréstimos consignados em nome de menores.3 Há cerca de 763 mil empréstimos consignados ativos feitos em nome de menores de idade, com valor médio de dezesseis mil reais.
Os valores, no caso, são pagos mediante descontos em benefícios destinados a crianças e adolescentes via BPC - Benefício de Prestação Continuada ou pensões por morte de algum genitor. O BPC está previsto na LOAS - Lei Orgânica da Assistência Social - lei 8.742/93, sendo representada pelo recebimento de um salário mínimo por mês ao idoso com idade igual ou superior a 65 anos, e PCD - Pessoas com deficiência, com qualquer deficiência física, intelectual, mental ou sensorial de longo prazo (com duração superior a 2 anos), com renda familiar per capita inferior a 1/4 do salário mínimo.
Destaca-se que esses menores, titulares desses empréstimos, de regra, nem sabem da existência destes e também não são capazes de reclamar. A faixa etária mais afetada é a de 11 a 13 anos de idade. O INSS revogou a norma permissiva dos contratos em agosto de 2024, editando a IN 190/25, somente permitindo a operação mediante ordem judicial, mas o dano já estava feito. Destaca-se que o INSS somente assim agiu em decorrência de ordem judicial emanada de ação civil pública intentada pelo Ministério Público Federal, junto ao agravo de instrumento 5013030-21.2025.4.03.0000, em tramite perante o TRF-3, e que suspendeu os efeitos da IN anterior do INSS, de 136/22, e que permitia a operação de crédito consignado para menores beneficiários do INSS e Loas.
Não há menor dúvida que as operações envolvendo os menores tomadores de crédito consignado expuseram estes a riscos econômicos variados. Se por algum motivo o benefício fosse cancelado, ou por sua razão viesse a ser suspenso ou cancelado, a dívida formada continuaria sendo cobrada do menor, atingindo seu patrimônio.
Deve se questionar se que o valor tomado chegou realmente a beneficiar, de alguma maneira, o menor titular da dívida. Será que o menor tinha algum conhecimento do que foi feito em seu nome? Se o indivíduo recebe um benefício, tipo BCP, cujo teto é um salário mínimo nacional, uma verba bastante limitada, ele teria condições de suportar o pagamento de encargos de empréstimo, recebendo essa verba descontada em até 35% ao mês? Esse tipo de operação é feita sem o menor cuidado com a pessoa do tomador, que é um sujeito, absolutamente incapaz em face da tenra idade.
Um sujeito que percebe renda mensal muito baixa, que lhe serve basicamente para a subsistência, não tem condições de ver esse valor ser reduzido para pagar um contrato de mútuo. É um sacrifício cruel do futuro.
O INSS, que é uma representação da União Federal, do Estado brasileiro, e demonstrou um comportamento largamente divorciado de princípios basilares da CF/88, da lei de proteção da crianças e do adolescente, e da Convenção da ONU sobre Direito das Crianças O contrato de mútuo praticado vilipendiou de todas as formas a sua função social (art. 421, e 2025 do CC), preceito sine qua non da sua eficácia como ato jurídico. Da parte do sistema bancário, é visível a falta ampla de compromisso com a proteção do consumidor (art. 39, inciso IV do CDC), viabilizando contratos complexos, que geram endividamento a menores empobrecidos e alguns, muito doentes, abusando da necessidade e inexperiência destes ou de seus representantes. Da mesma forma, os responsáveis pelos menores que tenham feito tais operações, devem ter a respectiva guarda analisada, pois não é crível aceitar que tenham assim agido em prol dos mutuários, uma vez que lhes esteja sendo penhorado o futuro com dívidas bancárias de longa execução.
O INSS foi criado em 27/6/1990, por meio do decreto 99.350. Sua principal missão, como órgão prestador de serviço público é garantir o reconhecimento do direito, a manutenção e o pagamento de benefícios e os serviços previdenciários do RGPS - Regime Geral de Previdência Social, o reconhecimento do direito, a manutenção, o pagamento de benefícios assistenciais da Loas, e o reconhecimento do direito e a manutenção das aposentadorias e das pensões do RPPU - Regime Próprio de Previdência Social da União, no âmbito das autarquias e das fundações públicas. Na sua gênese, jamais constara que o INSS acabaria sendo intermediário de instituição financeira para instrumentalização de crédito consignado que recai sobre os benefícios acima indicados. Isso surge com o advento do crédito consignado a pensionistas do INSS, a partir da lei 10.820/03, quando a função precípua do INSS passa a ser transfigurada. Ou seja, há se pensar sobre resgatar o verdadeiro INSS, e cessar com este que atende mais a grandes interesses privados do que propriamente com os da população mais carente, idosos, doentes, etc.
Há registro de ações coletivas aforadas com vistas à anulação destes contratos consignados com menores e pedidos indenizatórios. Na nossa opinião, inclusive, eventual reparação pecuniária deveria ser depositada em fundo a esse menor, aguardando o mesmo atingir a maioridade, até que o mesmo pudesse escolher como gerir tal verba, visto que foi seu representante legal quem o colocou na situação de devedor, demonstrando incapacidade de ingerência de valores.
No âmbito desse consignados para menores há registros de situações lamentáveis e moralmente condenáveis, que nos deveriam fazer pensar penar que sociedade queremos, e para qual futuro nos direcionamos. No relato, o advogado João do Vale,4 que integra a Anced - Associação Brasileira de Defesa da Criança e do Adolescente, o mesmo reporta que há casos envolvendo até de bebês com apenas meses de idade, os quais e já estão endividados. O mesmo cita o exemplo de uma criança que nasceu em maio e, em dezembro, já tinha em seu nome uma dívida de R$ 15.593, a qual deveria ser paga em oitenta e quatro parcelas. Em outro caso, um bebê de três meses "contratou" um empréstimo por meio de cartão de crédito de R$ 1.650,00. O mesmo advogado registra que ter tido acesso a documentos do INSS indicando que, apenas em 2022, havia quinze contratos com mutuários menores de um ano.
A verba advinda da assistência social, ou do INSS, é de natureza alimentar, com mais razão ainda ao menor, o qual não aufere renda, não tendo atividade laboral remunerada, que possa complementar com algum outro ganho.
Ou seja, urge impedir que este tipo de operação seja cessada de imediato, sob pena de esquecermos noções mínimas de onde começa nossa de humanidade e onde nos separamos da brutalidade. Penhorar o futuro de crianças, de bebês, com contratos de empréstimo de dinheiro é vil, é abusivo, é a mais clara comprovação de falta de cuidado com gerações e com o ser humano em um estágio vulnerável de sua vida.
Diz o art. 4º do CDC, lei 8.078/90, que a Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo. Pois bem, a contratação de mútuo em dinheiro a menores de idade, aniquila com qualquer perspectiva de respeito e proteção aos valores da referida política. Precisamos melhorar como sociedade, e não permitir que o cenário exposto continue se perpetuando.
FONTE: MIGALHAS