Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Juiz das protetivas não é revisor da Vara de Família

quinta-feira, 24 de julho de 2025, 14h55

1. Introdução

 

A lei Maria da Penha foi criada para oferecer respostas rápidas e eficazes à violência doméstica, com instrumentos de proteção emergencial à mulher em situação de risco. No entanto, observa-se uma preocupante ampliação do uso das medidas protetivas para finalidades alheias à sua natureza original. Questões que deveriam ser resolvidas na Vara de Família - como partilha de bens, guarda de filhos, visitas e alimentos - têm sido deslocadas para os Juizados de Violência Doméstica sob a rubrica de "violência patrimonial" ou "psicológica". Este ensaio critica o esvaziamento da competência das Varas de Família e o uso oblíquo das medidas protetivas como atalho para resultados processuais desequilibrados e sem contraditório prévio.

 

2. Instrumentalização das medidas protetivas como atalho jurídico

 

Tem se tornado cada vez mais comum o uso de medidas protetivas para atingir fins que deveriam ser tratados nas Varas de Família. Por meio de simples declarações, sem a exigência de provas robustas, muitas mulheres que se autodeclaram vítimas buscam nas medidas protetivas provimentos que deveriam ser tratados com exclusividade em processos nas Varas de família. Dentre as providências que entendemos estrem sendo ampliadas indevidamente para os Juizados de Violência Doméstica, podemos citar o afastamento do lar, bloqueio de bens, suspensão de visitas e até mesmo fixação de alimentos provisórios. Esses efeitos patrimoniais e parentais, que deveriam ser cuidadosamente analisados sob o crivo do contraditório e com avaliação técnica na Vara de Família, acabam sendo solicitados e concedidos de forma sumária e unilateral pelos Juizados de Violência Doméstica.

 

3. O conceito aberto de "violência patrimonial" como porta de entrada

 

O problema central está no caráter vago e aberto do conceito de "violência patrimonial". Termos como "impedir acesso a bens comuns" ou "despojar de recursos" são utilizados com ampla margem de interpretação. Qualquer conflito sobre bens do casal ou contas bancárias pode passar a ser interpretado como violência doméstica, o que desloca indevidamente a competência para os Juizados de Violência Doméstica. Com isso, se evita a via natural - o processo judicial na Vara de Família - onde o contraditório é assegurado e onde as partes têm paridade de armas.

 

4. Prejuízo à paridade de armas e à isonomia processual

 

Nos Juizados de Violência Doméstica, o modelo processual favorece a urgência e a proteção, o que é legítimo nos casos de risco real. Contudo, quando questões patrimoniais e familiares são artificialmente inseridas nesse sistema, cria-se um desequilíbrio processual. O homem acusado é surpreendido com medidas que afetam diretamente seus bens, seu convívio com os filhos e seu direito de defesa, sem que tenha a mínima oportunidade de ser ouvido. Isso viola os princípios da isonomia, da paridade de armas e do contraditório.

 

5. Inflação de competência dos Juizados e esvaziamento das Varas de Família

 

Ao permitir que qualquer alegação de "violência patrimonial" desloque a competência para os Juizados de Violência Doméstica, corre-se o risco de transformar esses juízos tão importantes em fóruns paralelos para demandas familiares. Isso enfraquece a função institucional da Vara de Família e sobrecarrega os Juizados com temas que exigem outro tipo de análise e enfoque, muitas vezes inter ou multidisciplinar. Em muitos casos, pretende-se que o juízo das medidas protetivas passe a atuar como revisor das decisões que deveriam ser tomadas nas Varas de Família, com maior densidade argumentativa.

 

6. A necessária urgência de um filtro jurídico mais rígido

 

É necessário implementar filtros mais rigorosos para separar verdadeiras situações de violência doméstica de disputas familiares travestidas de violência patrimonial e psicológica. A banalização das medidas protetivas prejudica não apenas o homem acusado injustamente, mas também compromete a credibilidade do próprio sistema de combate à violência contra a mulher. Questões como guarda, visitas, alimentos e partilha de bens devem ser resolvidas na esfera adequada, com garantias processuais efetivas e análise técnica, e não por meio de medidas emergenciais deferidas sem contraditório, a partir do relato unilateral de quem se declara vítima.

 

7. Conclusão

 

O juiz das medidas protetivas não pode assumir o papel de revisor da Vara de Família. O uso distorcido das medidas da lei Maria da Penha para resolver conflitos familiares fere o princípio da especialidade jurisdicional, fragiliza o contraditório e ameaça o equilíbrio do sistema de justiça. É urgente que o legislador e o Judiciário reconheçam esse movimento e restabeleçam os limites entre as esferas de competência, garantindo que medidas protetivas sejam utilizadas como instrumentos de proteção real, e não como atalhos para decisões patrimoniais e parentais sem o devido processo legal.

 

FONTE: MIGALHAS


topo