Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

TJPE - Brasileira adotada na infância por franceses reencontra a família biológica com a ajuda do Programa Origens

segunda-feira, 27 de novembro de 2023, 14h18

 

O Programa Origens, lançado por meio do Núcleo de Adoção e Estudos da Família (NAEF), da 2ª Vara da Infância e Juventude da Capital, do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), oferece um auxílio às pessoas que foram adotadas e desejam conhecer as suas famílias biológicas, dando um suporte para que elas possam entender as suas origens.

 

“Quem eu sou? Quem são os meus pais biológicos? De onde eu venho?” são perguntas comuns, do ponto de vista psicológico, que fazem parte da construção da identidade humana. Assim, existem diversas histórias de pessoas que viveram esse processo de autodescoberta, uma delas é Rebecca.

 

Rebecca Avogadro, 27 anos, um dia se chamou Jéssica Gregório da Silva, e há duas décadas tinha o sonho de saber mais sobre a sua origem. Ela nasceu no dia 11 de outubro de 1996, em Recife-PE, e foi adotada por um casal de franceses, Samy Raspail e Patrícia Raspail, quando tinha sete anos de idade, junto a dois dos seus oito irmãos biológicos, Dayvson e Matheus. Os três irmãos passaram a se chamar David Dayvson Raspail, Rebecca Jessica Raspail e Matthieu Matheus Raspail. Porém, a jovem optou por ser conhecida como Rebecca Raspail.

 

A brasileira tem poucas lembranças do passado, por isso percorreu uma jornada em busca da sua história. Até então, sua memória tinha sido marcada pela vivência na zona rural da França, uma fazenda em Comps, onde foi morar com os pais adotivos, seus irmãos biológicos e o filho da sua mãe adotiva. Hoje, Rebecca é casada com Phelipe Avogadro, e não utiliza mais o sobrenome de solteira – Raspail – herdado da família que a acolheu, mas foi com eles que passou os últimos 20 anos e de quem têm referências de um bom lar.

 

Em outubro de 2003, Samy e Patrícia, um fazendeiro e uma professora de uma escola infantil, vieram ao Brasil para adotar as crianças. O casal passou um mês e meio no país, cumprindo o estágio de convivência e dando início à adaptação da nova família que estava construindo. Durante esse período, uma equipe de Assistência Social e Psicologia constatou, por meio de um relatório de convivência, incluindo visitas e observações, que em pouco tempo as crianças se adaptaram à família e foram construídos vínculos afetivos entre elas e os pais adotivos. Dessa maneira, a equipe do setor da adoção do TJPE atestou que a adoção foi a melhor alternativa para o desenvolvimento social, emocional e mental das crianças.

 

Embora existam na memória de Rebecca algumas lacunas provocadas pelo tempo, a brasileira lembra que no dia que conheceu os pais adotivos correu logo para abraçá-los. “Estava muito feliz em ser adotada”, pontuou. A família Raspail se preparou para recebê-los, criando uma nova rotina para garantir aos filhos uma boa alimentação, educação, aulas de francês, atividades físicas e lazer.

 

Na época, o casal garantiu que os seus parentes e vizinhos também estavam muito felizes com a adoção e empolgados para conhecer os novos integrantes da família Raspail. Além disso, destacaram que na região em que moravam não existia preconceito racial. “A vizinhança da fazenda é bastante receptiva, não iremos esbarrar com questões raciais, pois em nosso país a miscigenação é um fator cultural”, contaram.

 

Rebecca disse como estar com dois dos seus irmãos foi fundamental nessa adaptação. “O fato da adoção incluir meus irmãos foi algo bastante importante no processo de convivência com a nova família, pois sempre fui muito próxima a eles”, constatou a jovem. Com a mudança do país, os três irmãos também tiveram que se adaptar à vivência na Europa. Acostumados com Recife, uma cidade grande com barulho e movimentação, eles foram morar em um contexto rural.

 

No novo país tudo era muito diferente: a cultura, a língua e a temperatura. Mas, aos poucos, com o apoio familiar, as crianças passaram por uma aculturação e tiveram oportunidades promissoras, fruto de um lar com uma boa base familiar. “Nós tivemos uma bela infância e uma ótima educação. Deus permitiu que nós crescêssemos em uma família, em um lar cristão, onde tive um encontro pessoal com Jesus Cristo, um elemento que é muito importante no meu testemunho. Essa família não era perfeita, mas foi a família perfeita para nós”, falou Rebecca.

 

Porém, mesmo que a jovem reconhecesse o quanto tinha sido abençoada de ir para um bom lar, na adolescência, um período dito por ela mesmo, como de “altos e baixos”, passou a se questionar em relação à própria identidade, sobre quem ela era. “Tinha muita raiva, pensava com frequência: ‘Por que os meus pais me abandonaram?’ Mas, em 2017, tive a oportunidade de ler um livro que falava sobre o perdão e do poder que liberta”, recordou.

 

Rebecca disse que, na época, não estava bem com a pessoa que ela era, tinha raiva de si mesmo e dos outros. Porém, concluiu que esse sentimento tinha a ver com o seu passado, pois ela nunca tinha o entendido. “Quando a gente tem feridas acabamos ferindo as pessoas ao nosso redor”, refletiu. Assim, acredita que por meio dessa leitura transformadora, e graças ao perdão e o poder de Jesus Cristo, conseguiu perdoar os pais biológicos. “E a consequência disso é estar livre, se sentir bem consigo mesmo, se amar e gostar dos outros. Não sou perfeita, mas estou em um processo intenso de cura e libertação”, enfatizou a jovem.

 

Em 2020, ela decidiu trilhar uma jornada para encontrar a sua família biológica, pois sempre teve vontade de voltar para conhecer a sua origem, principalmente depois do processo de cura que vivenciou. A brasileira entrou em contato com o Judiciário estadual pernambucano e contou com o apoio e o acompanhamento do Programa Origens para encontrar os seus parentes. Rebecca teve acesso aos documentos que direcionaram e montaram as partes do quebra-cabeça da sua história.

 

Rebecca é filha biológica de José Gregório da Silva e Rute Maria da Silva, a penúltima entre os nove filhos do casal. Com uma origem humilde, marcado por um cenário de periferia, descobriu que nos primeiros anos de vida morou com a família biológica no bairro da Nova Descoberta e, com quatro anos, foi viver em uma instituição de acolhimento chamada Casa dos Amigos, situado no bairro de Campo Grande. Ela ainda nutria algumas lembranças do abrigo e da escola que frequentou na época, tendo boas recordações dos lugares e das pessoas que cuidaram dela. “O abrigo foi realmente a minha casa, lá eu fui bem acolhida e cuidada”, pontuou.

 

Foi o Programa Origens que entrou em contato com a sua família biológica e, com o consentimento de todos os envolvidos, auxiliou no contato virtual da família que há anos não se via. Até que em 2023, a filha de José e Rute, e a irmã de muitos irmãos da família Silva, retornou ao Brasil para encontrá-los pessoalmente. Ainda que fosse bem jovem quando saiu do país, algumas pessoas e coisas haviam marcado a sua história, como o carinho da irmã biológica, Juliana da Silva, 5 anos mais velha; o afeto da cuidadora do Abrigo, Valdirene; e determinadas comidas brasileiras, como o sabor de uma manga e o cuscuz de milho, que, segundo a sua família, era muito apreciado por Rebecca.

 

Atualmente, ela mora com o marido, Phelipe Avogadro, em Grenoble, na França. No país, ambos atuam como educadores especializados. Phelipe fez questão de acompanhar a esposa na viagem ao Brasil, lhe dando todo o apoio nessa jornada. Quando o casal chegou em Recife, Rebecca teve a oportunidade de visitar o prédio em que funcionou a escola que estudou e o abrigo onde viveu. Aqui, ela deu um abraço bem apertado na irmã Juliana – e pôde notar o quanto elas são parecidas – , reencontrou a cuidadora Valdirene, e ficou surpresa quando soube que um dos seus professores guardava, carinhosamente, uma foto sua com os seus dois irmãos.

 


Com Rute, sua mãe, no bairro de Dois Unidos, no Recife

 

O encontro da brasileira com a sua mãe foi vivido com muita paz e perdão, segundo a jovem. Agora, Rebecca se sentia pronta para abraçar Rute, que atualmente mora em Dois Unidos. Elas conversaram com a ajuda de uma psicóloga do Programa fluente em francês. Durante a viagem, ela também reencontrou o pai biológico, José, que atualmente mora em Caetés, Abreu e Lima. Ele vestiu a melhor roupa que tinha para reencontrar a filha e estava muito orgulhoso. Além disso, ela encontrou outros irmãos biológicos.

 

Para Rebecca, o reencontro com a sua família biológica permitiu que ela fizesse todas as perguntas que queria fazer. “Agora volto para a França com o sentimento que aproveitei, ao máximo, os encontros para esclarecer tudo o que eu queria. É um ciclo que se fecha na minha vida. O futuro se chama liberdade. Agora quero investir na família que estou construindo”, concluiu.

 

Rebecca também encontrou com o pai, no bairro de Caetés, em Abreu e Lima

 

Conheça mais sobre o Programa Origens do TJPE

O Programa Origens foi lançado em 16 de novembro de 2022 e tem um suporte de um outro programa do TJPE, Sei quem Sou, iniciativa que surgiu em 2009 e possibilita o acesso às informações processuais relativas à origem biológica de filhos adotivos. Logo, o Sei Quem Sou cumpre a função de oferecer os dados que constam no processo, para que possam ser feitas as intervenções do Programa Origens.

 

Assim, os interessados no Programa Origens podem buscar a equipe da unidade, que irá escutá-las, assegurando-as assistências jurídica e psicossocial. No primeiro atendimento serão repassadas as informações que constam no processo judicial e, caso seja da vontade da pessoa, através de dados constantes nos processos, a equipe do NAEF tentará localizar o endereço atual dos genitores e/ou outros membros da família extensa. Após essa localização, a família de origem será consultada a respeito da disponibilidade para contato, caso seja esse o desejo do demandante. Havendo a aproximação, a equipe da unidade também poderá realizar atendimentos de suporte e acolhimento.

 

Segundo a psicóloga da 2ª Vara da Infância e da Juventude do TJPE, Silvana Nicodemos, o suporte oferecido pelo Programa Origens é fundamental nessa jornada de busca pela sua história. “Nesses encontros surgem diversas questões que precisam ser elaboradas, vem muita emoção, dor, luto – o luto da pessoa que foi adotada, o luto da família – , então a gente dá suporte em todos esses aspectos, a partir da nossa formação em serviço social e em psicologia”, ressaltou Silvana.

 

A iniciativa já acompanhou outros casos como o de Rebecca Avogadro. Silvana pontuou que no passado foi dado um suporte a um caso que foi muito bem sucedido de uma adoção que se passou em Recife, e hoje a pessoa tem um convívio frequente com a família de origem. “Foram adicionados vínculos sem excluir aqueles que já foram construídos com a família adotiva. Foi interessante porque houve uma identificação com a irmã e também com a mãe biológica. A pessoa adotada conseguiu integrar o passado e o presente, pois esse é um dos objetivos do programa, integrar diferentes etapas da vida de modo a compor essa trajetória e fazer com que ela seja contínua, que não haja rupturas”, destacou Silvana.

 

No Palácio, próxima ao marido, na presença do desembargador Luiz Carlos e dos juízes Élio Braz e Hélia Viegas

 

Em relação ao apoio do Programa, Rebecca Avogadro enfatizou o quanto foi importante esse acompanhamento e agradeceu a equipe por todo o suporte. Além disso, a jovem teve a oportunidade de conversar pessoalmente com o desembargador Luiz Carlos de Barros Figueirêdo, que há 20 anos, como juiz, assinou o seu processo adotivo e o dos seus dois irmãos. O magistrado é o atual presidente do TJPE, e, na época, fazia parte da 2ª Vara da Infância e Juventude da Capital. O encontro aconteceu no Palácio da Justiça e contou também com a presença do juiz titular da 2ª Vara da Infância e Juventude, Élio Braz, e da juíza Hélia Viegas, atual coordenadora da Infância e Juventude do TJPE.

 

Com o auxílio da psicóloga do Programa, fluente em francês, Rebecca fez perguntas para o presidente da instituição e agradeceu a sua sentença. “Para mim é muito importante estar diante do senhor para agradecer a decisão que o senhor tomou há 20 anos, porque ela teve boas consequências. Esse encontro é para te dizer: ‘obrigada’” (palavra que Rebecca fez questão de falar em português, para expressar, na língua do país de origem, o sentimento de gratidão pela decisão que transformou a sua vida). Diante disso, o presidente ressaltou: “Esse é o nosso dever, prestar todas as informações a todas as pessoas”.

 

Luiz Carlos destacou que a lei diz que todo mundo tem direito às suas origens. “Pernambuco tem um diferencial, nós temos todos os processos de 1990 para cá digitalizados, separados e guardados no Projeto Sei Quem Sou, onde a informação está sempre disponível. Temos até alguns casos anteriores a 1990. Então, isso é importante pois todo mundo tem direito a sua biografia, ela não deve ser objeto de enganação de quem quer que seja. Portanto, cada caso assim é a prova viva de que o caminho é esse”, disse o presidente.

 

No encontro, o presidente explicou para Rebecca que existe uma forte discriminação econômica em nosso país. “Na época era comum, famílias que tinham muitos filhos, passarem por graves problemas financeiros, pois não tinham apoio familiar e nem governamental. Como sabemos, quem é pobre no Brasil, infelizmente, tem poucas oportunidades. Então, conseguir quebrar esse ciclo é uma raridade. Você é a prova viva que a pessoa pode estar bem e ser feliz, independente da cor, gênero, condição socioeconômica. É possível viver em outras comunidades, com a qual não teve antes um contato, com uma alimentação e clima diferente, encontrando pessoas com outras raças, e gerando amor, que é a única moeda que circula em todo o universo”, refletiu Luiz Carlos de Barros Figueirêdo.

 

Algumas questões foram indagadas por Rebecca, como, por exemplo, “o que no dia do julgamento fez com o que ele observasse que os pais que os adotaram eram capazes de cuidar das três crianças”. Diante disso, o magistrado enfatizou que o que importa, em todos os casos, é que um juiz consiga perceber o amor e a decisão irreversível daqueles que estão adotando. “Se pelo menos um caso dessas adoções, sejam nacionais ou estrangeiras, estiverem sendo bem sucedidas, já valeu a pena. Na adoção precisa ter amor, carinho e atenção”, finalizou o presidente.

 

Na atual profissão exercida por Rebecca, ela pode perceber a importância desses sentimentos expressos pelo magistrado vinculados ao cuidado do público infantil. Ela cuida de crianças como um dia foi cuidada. “Hoje o papel foi invertido”, disse a jovem.

 

Considerando o impacto do Programa Origens na sua vida, Rebecca destacou a relevância da iniciativa: “Gostaria de dizer a todos que existe um Núcleo que ajuda as pessoas a viverem o processo de conhecerem a própria história, pois considero que é importante se fazer essa reflexão. Eu sou muito grata a toda equipe e a Deus, porque graças a Ele hoje posso estar aqui”.

 

São muitas “Rebeccas”, “Marias” e “Cecílias”, e diversos “Matheus”, “Dayvsons” e “Pedros” espalhados por Pernambuco, pessoas que também têm o direito de saberem da sua origem, caso tenham esse desejo. Assim, para entrar em contato com o Programa, é só enviar um e-mail para: ciij.naef@tjpe.jus.br


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Texto: Carolina Cerqueira  |  Ascom TJPE
Fotos 1 e 4: Assis Lima   |  Ascom TJPE
Fotos 2 e 3: Cortesia

 

FONTE: Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (TJPE) 

 

 


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