Migalhas: Direito de arrependimento, quando o consumidor não pode desistir da compra?
por Paola Pereira Branta Abud
sexta-feira, 01 de agosto de 2025, 14h56
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O direito de arrependimento é um dos principais mecanismos existentes referentes à proteção ao consumidor no Brasil. Conforme previsto no art. 49 do CDC).O direito de arrependimento garante que compras realizadas fora do estabelecimento comercial - como, por exemplo, efetuadas em sites de e-commerce, catálogos ou televendas - possam ser canceladas por qualquer consumidor dentro do prazo de 7, sem prévia necessidade de justificativa, bem como com reembolso integral dos valores pagos.
No entanto, é importante dizer que nem todos os produtos e serviços estão sujeitos a essa regra e diversos são os cenários para a exceção à regra trazida pelo art. 49 do CDC, o que muitas vezes leva a reclamações improcedentes, como por exemplo:
📌 pela natureza do produto;
📌 por seu caráter personalizado;
📌 por sua impossibilidade de reutilização após o consumo.
Assim, o principal objetivo deste artigo é explorar e explicitar os principais produtos e serviços que não se enquadram no direito citado acima e analisar os fundamentos jurídicos e jurisprudências que justificam e embasam essas exceções.
O fundamento do direito de arrependimento
O direito de arrependimento tem como principal objetivo proteger os consumidores da compra por impulso ou até de eventual propaganda enganosa, especialmente em situações em que ele não pode avaliar adequadamente o produto antes da aquisição. Isso ocorre principalmente em compras à distância, onde não há contato físico com o item ou interação direta com o fornecedor, ou simplesmente pelo valor.
Um dos principais exemplos em que tal direito é utilizado com bastante ocorrência por seus consumidores são os cursos à distância, ou seja, lições e conteúdos disponibilizados virtualmente mediante assinatura, e que, conforme ocorre a visualização e exposição dos conteúdos, o consumidor tem a possibilidade de discernir se as aulas atendiam às suas expectativas e se vale a pena continuar com sua assinatura.
Nesse caso, se determinado curso muitas vezes impulsionados pelo marketing não cumpre o que promete, existe a possibilidade do aluno "desistir" de sua aquisição, tendo direito ao reembolso integral dos valores despendidos anteriormente.
Apesar da ampla aplicação do direito de arrependimento, o CDC, regulamentações posteriores e os entendimentos atuais dos Tribunais têm estabelecido algumas exceções para que o equilíbrio entre os direitos do consumidor e os direitos dos fornecedores sejam garantidos.
Produtos e serviços que podem ser excluídos do direito de arrependimento
Os produtos personalizados são previamente calculados e confeccionados de acordo com especificações individuais de seus consumidores, o que os tornam únicos e muitas vezes inviáveis para a revenda. Alguns exemplos são:
📌 Móveis planejados sob medida;
📌 Roupas feitas sob encomenda;
📌 Joias personalizadas;
📌 Produtos com gravação de nomes ou mensagens exclusivas;
📌 Obras de arte e esculturas específicas feitas sob encomenda.
📌 Como os itens descritos acima são produzidos exclusivamente para seus compradores, não há como o fornecedor revendê-los caso o consumidor se arrependa da compra.
Dessa forma, o direito de arrependimento não deve se aplicar a esses casos, pois se o fosse, a relação de consumo se tornaria absolutamente desigual entre direitos e deveres. Vale lembrar que cada caso precisa ser detalhadamente avaliado, vez que algumas obras de arte, por exemplo, podem ser revendidas.
Neste caso, a impossibilidade de adequação ao art. 49 do CDC não existiria, tornando a devolução de determinados produtos possíveis, mas mediante prova qualificada, o que certamente afastaria eventual discussão judicial dos juizados especiais.
Produtos digitais e serviços de streaming
Com o crescimento exponencial do mercado digital, surgiram novas categorias de produtos que não existiam quando o CDC foi criado. Entre eles, destacam-se os bens digitais, como:
📌 Softwares adquiridos por download;
📌 E-books e audiolivros;
📌 Assinaturas de streaming de filmes, séries, músicas ou jogos;
📌 Serviços de entretenimento esportivo, dentre outros.
Muitas dessas transações envolvem bens intangíveis que são entregues instantaneamente ao consumidor, impossibilitando a devolução. Uma vez que um software ou um e-book é baixado, não há como "devolvê-lo" da mesma forma que um produto físico.
Em outros casos, a entrega dependerá de eventos externos, não controláveis pelos fornecedores. E, ainda que não haja um entendimento pacificado sobre a exclusão da aplicação do art. 49 do CDC em face dos serviços de streaming, o que parece correto é admitir que no caso de serviços de streaming, a questão gira em torno de quando o serviço começa a ser prestado e se o consumidor teve a oportunidade de consumi-lo ou acessá-lo.
Assim, há chances de que os tribunais interpretem pela possibilidade de exclusão do direito de arrependimento quando o serviço for consumido ou acessado. No Brasil, o decreto 7.962/13, que regulamenta o comércio eletrônico, não trouxe uma exclusão expressa dos produtos digitais do direito de arrependimento, mas decisões judiciais têm reconhecido que, em certos casos, o arrependimento não pode ser aplicado. Embora não haja uma jurisprudência consolidada como antes dito, especificamente sobre produtos digitais, algumas decisões judiciais oferecem insights relevantes.
Por exemplo, o TJ/DFT decidiu que o direito de arrependimento não se aplica a serviços e produtos fotográficos personalizados após sua execução, devido à natureza personalíssima e à facilidade de reprodução do material produzido. No acórdão 1.200.412, a 1ª turma recursal dos juizados especiais do Distrito Federal destacou que permitir o arrependimento nesses casos prejudicaria a atividade da empresa fornecedora, vejamos:
JUIZADO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. CONTRATO PARA CONFECÇÃO DE ÁLBUM DE FOTOGRAFIAS. FORMATURA. DIREITO DE ARREPENDIMENTO. DESCABIMENTO. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO PARA APLICAÇÃO DE MULTA À EMPRESA. NULIDADE. 1. Trata-se de recurso inominado interposto contra sentença que declarou a nulidade da decisão proferida nos autos do processo administrativo n. 0015-000512/2016, e a inexigibilidade da multa pecuniária aplicada ao recorrido, no valor de R$ 12.960,00. 2. O procedimento administrativo originou-se de reclamação de consumidora que efetuou compra, a domicílio, de 1 (um) álbum de formatura, 1 (um) estojo, 1 (um) DVD, 1 (um) pen drive, 1 (um) porta-retrato e 2 (dois) pôsteres no tamanho de 30x40 cm com moldura, e, dentro do prazo de 7 dias, pretendeu exercer o direito de arrependimento previsto no art. 49 do Código de Defesa do Consumidor - CDC, enfrentando resistência do recorrido. 3. No caso, o recorrido/autor se opôs ao desfazimento do negócio por considerar que o direito de arrependimento não poderia ser aplicado e que todo o material teria caráter personalíssimo e já estaria em posse da consumidora. Com efeito, conquanto o art. 49 do CDC preveja que o consumidor tem o direito de desistir do negócio, no prazo de 7 dias, sem qualquer motivação, as fotografias são, de fato, produto de caráter personalíssimo e de fácil reprodução, e sua devolução compromete a atividade empresarial da recorrida. "(...) Conquanto seja assegurado ao consumidor o direito de resolver os contratos firmados fora do estabelecimento do fornecedor, no prazo de sete dias (art. 49 do CDC), tal direito não pode ser reconhecido nas hipóteses em que a prestação se exaure. Tal assertiva decorre da regra hermenêutica segundo a qual, na aplicação da lei o juiz deve atender aos fins sociais a que ela se destina (art. 5º, da LICC). (...) A entrega de arquivo com fotografias digitais, no ato da compra (fl.06), exaure a prestação de serviços e inútil a devolução pela facilidade com que pode ser reproduzido e utilizado. Assim, resta inviabilizado o exercício do direito de arrependimento, pelo que não cabe a resolução do contrato com repetição do preço? (20160910046308ACJ, Relator Designado AISTON HENRIQUE DE SOUSA, 1ª TURMA RECURSAL, Data de Julgamento: 27/10/2016, Publicado no DJE: 06/03/2017. p.: 485/487). 4. Dessa forma, descabe o exercício do direito de arrependimento, tendo sido lícita a oposição do recorrido/autor à pretensão da consumidora. Por consequência, a multa imposta ao recorrido/autor reveste-se de ilicitude, devendo ser mantida a r. sentença. 5. RECURSO CONHECIDO e NÃO PROVIDO. Sentença mantida. Sem custas processuais, ante isenção legal. Sem honorários advocatícios, pois não houve apresentação de contrarrazões. 6. A ementa servirá de acórdão, conforme art. 46 da Lei n. 9.099/952.
Serviços já prestados
Outro caso em que o direito de arrependimento pode não ser aplicável ocorre na ocasião em que um serviço já foi integralmente prestado antes mesmo do consumidor exercer seu direito de arrependimento. Isso inclui:
📍 Serviços de hospedagem de longa ou curta duração;
📍 Procedimentos e cirurgias médicas e estéticas já realizadas;
📍 Consultorias e mentorias individuais.
Portanto, cumpre dizer que se o serviço já foi consumido, não faz sentido algum conceder ao consumidor o direito de desistir ou de receber seu dinheiro de volta.
Produtos perecíveis e de consumo imediato
Alguns produtos perecíveis, como por exemplo alimentos e flores, também estão entre aqueles que não podem ser devolvidos. Isso se deve ao fato de que sua comercialização tem um prazo de validade bastante limitado, tornando, muita das vezes, inviável sua revenda. Exemplos incluem:
📍 Cestas de café da manhã;
📍 Produtos de padarias e confeitarias;
📍 Algumas carnes e laticínios;
📍 Passagens Aéreas.
A resolução 400/16 da ANAC em seu art. 11 3 estabelece que o consumidor tem o direito de desistir da compra de uma passagem aérea dentro do prazo de 24 horas após a emissão do bilhete, desde que a compra tenha sido realizada com pelo menos sete dias de antecedência da data do voo.
Essa regra visa proteger o consumidor sem comprometer a operação das companhias aéreas. Se a compra da passagem não atender a esses critérios (por exemplo, se for feita com menos de sete dias de antecedência ou se o cancelamento for solicitado após 24 horas da compra), o direito de arrependimento do CDC pode não ser aplicado.
Claro que mesmo sem a aplicação do direito de arrependimento, o consumidor ainda tem proteção garantida em casos como, por exemplo:
📍 Cancelamento do voo pela companhia aérea: Se a empresa cancelar o voo ou fizer mudanças significativas, o passageiro pode pedir reembolso integral.
📍 Desistência conforme regras da tarifa: Muitas companhias permitem cancelamentos mediante pagamento de multa, conforme as regras tarifárias informadas no momento da compra.
📍 Problemas na prestação do serviço: Se houver falha no serviço prestado (como atraso excessivo ou overbooking), o passageiro tem direito a compensações.
📍 Além disso, itens de consumo imediato, como ingressos para eventos, também são frequentemente excluídos do direito de arrependimento como, por exemplo, em casos nos quais o ingresso já foi utilizado, o evento já aconteceu ou já se iniciou ou está prestes a iniciar.
Apesar da possível exclusão do direito de arrependimento, o consumidor continua protegido em algumas situações, como:
📍 Cancelamento ou adiamento do evento: Se o evento for cancelado ou remarcado, o consumidor pode ter direito ao reembolso ou à remarcação do ingresso.
📍 Problemas na prestação do serviço: Se houver falhas graves na organização do evento (como superlotação ou estrutura inadequada), o consumidor pode buscar ressarcimento, no entanto, tais fatos precisam de um mínimo de embasamento.
📍 Venda casada: A venda casada é uma prática abusiva que ocorre quando o fornecedor de um produto ou serviço condiciona a compra de um item à aquisição de outro, de forma obrigatória e sem a devida opção de escolha por parte do consumidor. Se o ingresso foi vendido junto a outros produtos ou serviços de forma compulsória (como pacotes de alimentação obrigatórios), há violação do art. 39 inciso I, veja-se:
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;
Essa prática é claramente proibida pelo CDC, que visa proteger os consumidores de práticas comerciais desleais que limitam sua liberdade de escolha e os colocam em desvantagem.
Por outro lado, se o consumidor tiver a opção de adquirir tais serviços de forma separada e o fez por livre escolha, também não terá direito ao reembolso integral nos casos em que não se aplicar o arrependimento.
📍 Jornais, revistas e publicações periódicas
📍 Jornais, revistas e assinaturas de publicações periódicas são tradicionalmente excluídas do direito de arrependimento. Isso ocorre porque o valor do produto está no seu conteúdo informativo, que pode ser consumido imediatamente após a sua compra.
A legislação brasileira não é expressa quanto a esse tema, mas decisões judiciais têm afastado a aplicação do direito de arrependimento nesses casos, especialmente quando o consumidor já acessou ou utilizou a publicação, bem como nos casos em que realizou a assinatura anual, para pagar mais barato pelo produto, ocasião que poderá cancelar a renovação do ciclo, mas não haverá reembolso das demais parcelas, considerando que o conteúdo continue a ser disponibilizado.
Aplicações no setor de turismo
O setor de turismo também possui exceções ao direito de arrependimento. Algumas reservas de hotéis e passagens aéreas não permitem cancelamento gratuito, especialmente quando compradas com tarifas promocionais. A lei geral do turismo (lei 11.771/08) e regulamentações da ANAC - Agência Nacional de Aviação Civil estabelecem regras específicas para cancelamento de passagens aéreas e pacotes de viagens, muitas vezes excluindo a aplicação do direito de arrependimento, conforme previamente dito, especialmente quando o fornecedor expõe com clareza as regras para tal contratação.
A regulamentação e a proteção ao consumidor
Cumpre lembrar que a exclusão do direito de arrependimento para certos produtos e serviços não significa que o consumidor ficará desprotegido. O CDC ainda garante direitos fundamentais ao longo de toda legislação, como por exemplo:
i) A necessidade de informação clara e adequada sobre os produtos comercializados: A transparência na oferta de produtos e serviços é um dos pilares do CDC.
O direito à informação adequada e clara está previsto no art. 6º, inciso III4 , e impõe ao fornecedor o dever de fornecer dados completos, precisos e acessíveis sobre os produtos e serviços comercializados. Essa obrigação visa garantir que o consumidor tome decisões de compra de forma consciente, evitando surpresas ou prejuízos decorrentes da falta de informações essenciais.
Por outro lado, acaso a informação esteja clara, não pode o consumidor se utilizar da proteção da norma, pois do contrário haveria total desequilíbrio da relação consumerista.
A falta de atenção do consumidor ao contratar serviços e adquirir produtos na internet, por exemplo, é um problema recorrente, especialmente quando se trata da leitura dos termos de uso e condições contratuais. Muitos usuários realizam compras ou assinaturas sem se atentar às regras estabelecidas, ignorando cláusulas sobre prazos, formas de cancelamento e possíveis encargos.
Posteriormente, ao desejarem cancelar o serviço, surpreendem-se com cobranças previstas no contrato e, muitas vezes, buscam se eximir do pagamento sob a alegação de desconhecimento ou violação ao seu direito à informação clara.
No entanto, a legislação brasileira prevê que o contrato eletrônico tem a mesma validade de um documento físico, e cabe ao consumidor agir com diligência antes de finalizar uma transação, evitando prejuízos e disputas desnecessárias.
📢 Garantia legal e defeitos: Se um produto ou serviço apresentar defeito, o consumidor continua protegido e pode exigir reparo ou substituição, conforme o art. 18 do CD5. No entanto, este defeito não pode ser advindo de mau uso, conservação em local inadequado ou em desrespeito as orientações do fornecedor pelo consumidor.
📢 Cancelamento por descumprimento contratual: Caso o fornecedor descumpra prazos ou ofereça um serviço diferente do contratado, o consumidor pode pedir reembolso e, em alguns casos, até mesmo indenização pelos prejuízos sofridos, lembrando sempre, que a relação jurídica consumerista estabelece direitos e deveres para ambas as partes, podendo, também, o fornecedor exigir multas e demais penalidades quando os consumidores não cumprem com o contrato.
Conclusão
O direito de arrependimento, como anteriormente explicitado é uma ferramenta importante para proteger o consumidor, mas não se aplica a todos os produtos e serviços e deve ser examinada com cuidado pelo Judiciário. Bens personalizados, digitais, perecíveis e serviços já prestados são algumas das exceções reconhecidas pela legislação e pela jurisprudência. Além disso, os consumidores precisam se atentar às regras e/ou condições indicadas pelos fornecedores para o serviço ou uso do produto adquirido.
E para evitar conflitos, tanto consumidores quanto fornecedores devem estar cientes das regras que regem o direito de arrependimento. Informações claras no momento da compra, transparência nos contratos e respeito às normas do CDC são fundamentais para garantir uma relação de consumo realmente equilibrada.
Com o avanço da economia digital, é provável que novas regulamentações surjam para tratar de maneira mais específica produtos e serviços que não existiam à época da promulgação do CDC. Estas novas formas de consumo impõem desafios que a legislação atual não acompanha, resultando em distorções que favorecem abusos e incentivam a irresponsabilidade do consumidor, em detrimento da segurança jurídica e do equilíbrio contratual.
Por isso e enquanto não temos uma legislação atual, a interpretação das leis e entendimentos jurisprudenciais devem continuar buscando um equilíbrio entre a proteção ao consumidor e os interesses dos fornecedores, a fim de que injustiças não sejam cometidas.
Fonte: Migalhas