Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Criação da figura do juiz sem rosto em SC gera tempestade de críticas

sexta-feira, 18 de julho de 2025, 08h38

A instauração da Vara Estadual de Organizações Criminosas (Veoc) em Florianópolis, por meio da Resolução 7/2025, do último mês de maio, apresentou ao sistema penal brasileiro a figura do “juiz sem rosto”. Ao contrário de outras varas especializadas no combate ao crime organizado, instauradas a partir da Recomendação 3/2006 do Conselho Nacional de Justiça, a catarinense implementa um nível de anonimato inédito no Brasil.

 

A iniciativa sofre resistência da seccional catarinense da Ordem dos Advogados do Brasil e foi criticada por advogados criminalistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico. Magistrados de outros Tribunais de Justiça também expressaram reservas ao projeto do TJ-SC, mas pediram anonimato por entenderem que manifestações públicas poderiam caracterizar uma interferência indevida em outra corte estadual.

 

Entre as críticas levantadas estão desde a violação do princípio do juiz natural e a interpretação enviesada da Lei 12.694/2012 — que prevê o anonimato apenas dos votos divergentes das decisões colegiadas, e não dos julgadores — até a violação dos artigos 252 a 254 do Código de Processo Penal.

 

O corregedor-geral de Justiça do TJ-SC, desembargador Luiz Antônio Zanini Fornerolli, contou que a ideia surgiu a partir da constatação de que os crimes praticados em Santa Catarina passaram a apresentar com maior frequência particularidades próprias de organizações criminosas.

 

“O contexto específico da jurisdição de Santa Catarina, com suas particularidades e características, demandou profundo levantamento de dados com vistas a informar o procedimento de criação da Veoc. Mais do que mero levantamento estatístico da atuação dessas organizações no estado, fez-se uma profunda coleta e análise de dados nas mais variadas áreas indissociáveis da atuação criminosa — fenômenos como relações sociais e redes de influência do crime organizado, atividades econômicas e fluxos financeiros das facções, e mapeamento histórico e cultural das práticas delitivas”, explica o magistrado.

 

O corregedor rebateu as críticas ao modelo de “juiz sem rosto”: “Não se trata de um ‘juiz mascarado’, mas de um julgador protegido pela anonimização, na medida em que suas prerrogativas devem ser garantidas pelo Estado. Isso se estende também aos servidores, às vítimas, às testemunhas e a outros colaboradores, se assim entender prudente o juiz. Também se ressalta o fato de que as decisões serão proferidas por um colegiado, outra providência que, a um só tempo, protege tanto o juiz quanto o próprio réu, em razão da maior segurança jurídica que será conferida aos atos decisórios.”

 

Como vai funcionar

 

A Veoc vai funcionar em Florianópolis e terá competência para julgar todos os casos envolvendo organizações criminosas no estado. Dados da Corregedoria-Geral da Justiça do TJ-SC demonstram que a região do Vale do Itajaí concentra o segundo maior percentual de processos sobre organizações criminosas de Santa Catarina, com 22,08%. Já a região da Serra Catarinense, com 7,8%, tem o menor percentual.

 

A vara será composta por cinco juízes(as) e já tem um acervo de 2.182 processos, que estão divididos em 840 na fase de inquérito ou envolvendo medidas de investigação e 1.342 ações penais.

 

Os atos processuais sobre organizações criminosas que notoriamente possuem armas à disposição serão praticados por um colegiado de magistrados. Já os relacionados a organizações criminosas não armadas dependerão da avaliação do magistrado a que foi distribuído o processo para sem julgados de forma individual ou colegiada.

 

Uma das novidades apresentadas pelo TJ-SC é no sistema Teams, desenvolvido pela Microsoft, que permite a distorção facial e do som da voz do magistrado ao presidir uma audiência, o que torna impossível identificar se o julgador é homem ou mulher, além de qualquer característica pessoal.

 

A iniciativa visa garantir a segurança dos magistrados. Para o corregedor, a ausência de atos de violência contra juízes em Santa Catarina é fruto do trabalho preventivo da Corregedoria-Geral da Justiça, do Núcleo de Inteligência e Segurança Institucional (NIS), da Casa Militar e da Presidência do TJ-SC.

 

“É justo afirmar que o Judiciário de Santa Catarina sempre atuou na vanguarda, antecipando-se aos movimentos das facções criminosas e implementando medidas de segurança robustas para proteger magistrados, servidores e colaboradores”, sustenta Fornerolli.

 

Ressalvas

 

Magistrados dos Tribunais de Justiça de São Paulo e Minas Gerais, sob a condição de anonimato, criticaram a iniciativa catarinense. Segundo eles, o anonimato apresenta limitações práticas importantes, especialmente pela natureza pública dos atos processuais e pela dinâmica das varas especializadas.

 

Eles também apresentam ressalvas a potenciais conflitos entre a proteção institucional dos magistrados e os direitos e as garantias dos acusados. Além disso, questionam a eficácia do anonimato dos juízes.

 

“A sofisticação das organizações criminais pode levar a que presumam quem é o magistrado, tornando a iniciativa inócua. Ainda, a experiência comparada indica que medidas estruturais de proteção costumam ser mais efetivas do que soluções voltadas apenas à ocultação da identidade do magistrado”, argumentou um desembargador do TJ-MG.

 

Na advocacia criminalista, as críticas são ainda mais contundentes. Alberto Zacharias Toron afirma que a criação de um colegiado anônimo por meio de resolução viola os direitos dos acusados, “a começar pelo fato de que eles ficarão privados de arguir eventual incompatibilidade ou suspeição desse colegiado de julgadores”.

 

De acordo com o advogado, “o juiz imparcial é um direito fundamental de natureza processual e isso vai ficar inviabilizado com esses julgadores incógnitos, esses julgadores fantasmas, porque ninguém vai conhecê-los”.

 

Para ele, não se trata de uma “questão de procedimento, mas de uma questão de processo”. Por isso, é “matéria privativa da União” e não poderia ter sido criada por meio de “regramento infraordinário” do TJ-SC.

 

Em artigo publicado na ConJurAury Lopes Jr.Sheyner Yàsbeck AsfóraAdriana Maria Gomes de Souza Spengler e Fernanda Osorio afirmaram que “a figura do juiz anônimo, sem rosto, sem voz e sem assinatura” é inédita e inconstitucional, pois fere “de morte” o juiz natural e o devido processo legal.

 

Segundo eles, há um paradoxo, pois delegados e servidores da polícia que atuaram nos mesmos casos levados à vara não serão anonimizados. O mesmo ocorrerá com desembargadores e ministros que julgarão recursos contra decisões da Veoc.

 

Da mesma forma, quando o crime de organização criminosa for conexo com um crime doloso contra a vida, o caso será julgado pelo Tribunal do Júri. E os jurados terão rostos, vozes e nomes.

 

A violação da garantia do juiz natural ocorre, na visão dos advogados, devido ao deslocamento de processos de qualquer cidade do estado para a capital. “Ainda que o STF já tenha — no passado — admitido essa prática, segue sendo censurável. Continuaremos resistindo porque é uma clara manipulação da competência, agravada pelo fato de que tal modificação se deu com processos em curso.”

 

Eles também opinam que a resolução do TJ-SC “vai muito além de qualquer limite legal, constitucional ou convencional”, já que a Lei 12.694/2012 permite anonimizar somente votos divergentes.

 

Os criminalistas concordam que, por meio de uma “simples e precária resolução”, a Justiça catarinense criou uma norma processual “como se fosse uma mera organização judiciária interna”.

 

As violações ao devido processo são ainda mais amplas, segundo eles. Para além da impossibilidade de alegação de suspeição, impedimento ou qualquer outra situação que afete a imparcialidade dos julgadores anônimos, os acusados não terão a garantia de que estarão diante de magistrados competentes nas audiências com rostos e vozes distorcidos.

Outro problema apontado pelos criminalistas é que a resolução ignora o juiz das garantias, que deveria ser identificado e distinto do juiz do processo. Pela norma, os juízes da Veoc poderão decidir sobre prisão em flagrante, preventiva ou temporária, medidas cautelares, quebra de sigilo e outros atos típicos de investigação. Depois, os mesmos magistrados serão responsáveis por julgar esses casos, e não será possível saber se quem atuou na investigação também sentenciou ou não.

 

Conselheiro federal pela OAB-SC e coordenador-geral das Comissões e Procuradorias do Conselho Federal da OAB, Rafael Horn diz que a seccional catarinense da Ordem vai promover diálogo e interlocução institucional sobre o tema, com o objetivo de “preservar integralmente as prerrogativas da advocacia”.

 

“Esperamos poder construir em conjunto uma solução que atenda aos anseios da classe e assegure a proteção aos magistrados, uma necessidade que compreendemos integralmente.”

 

 

Fonte: Conjur


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