Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Má nutrição precisa ser pensada a partir de desigualdades sociais, dizem especialistas em saúde

por Isabela Nahas*

sexta-feira, 14 de novembro de 2025, 13h45

Texto: Isabela Nahas*
Arte: Gustavo Radaelli**

 

Mulher cozinha com uma frigideira e uma colher de pau sobre o queimador de um fogão

Segundo o artigo, os ultraprocessados se tornaram mais acessíveis do que alimentos in natura, o que trouxe novos desafios à saúde – Foto: senivpetro/Freepik

 

 

Em artigo científico recém-publicado, sete especialistas em saúde pública e nutrição concluíram que a segurança alimentar pode reduzir as desigualdades de gênero e raça. Intitulado Mulheres negras em insegurança alimentar são mais vulneráveis ao duplo fardo da má nutrição no Brasil: evidências do Inquérito Nacional de Alimentação, o estudo analisou dados que relacionam insegurança alimentar a grupos sociais. Mulheres negras são as que mais sofrem de obesidade ou sobrepeso e subnutrição, situação chamada de duplo fardo da má nutrição.

 

O artigo segue a orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que considera que a má nutrição engloba tanto o baixo peso e a subnutrição quanto o sobrepeso e a obesidade. Os dados utilizados são do Inquérito Nacional de Alimentação, uma parte da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), coletados entre julho de 2017 e julho de 2018.

 

Os resultados mostram que mulheres em insegurança alimentar têm cerca de 41% a mais de chances de terem obesidade do que homens brancos em segurança alimentar. Ao mesmo tempo, mulheres negras em insegurança alimentar têm também cerca de 41% mais chances de estarem abaixo do peso, dado que chamou a atenção dos pesquisadores e se tornou o título do artigo.

 

Dirce é uma mulher de pele clara. tem cabelo curto e liso. Veste uma blusa preta com gola em V.

Dirce Marchioni - Foto: Arquivo pessoal

 

 

Esse duplo fardo da má nutrição está relacionado com marcadores sociais. “As mulheres em geral ganham menos que os homens na mesma função, muitas vezes trabalham longe dos seus domicílios e quando chegam ainda têm que realizar o cuidado da família, da casa. (…) E ser negro aqui no Brasil também está ligado como um marcador social e tem todas as questões de racismo estrutural e desigualdades sociais carregadas por esse grupo”, diz Dirce Marchioni, professora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP e uma das autoras.

 

Hoje em dia, a fome está interligada não apenas com o baixo peso, mas também com a obesidade. Isso pode ser explicado pelo que a saúde chama de ciclo do superconsumo. “Quando a pessoa que está em insegurança alimentar tem acesso ao alimento, ela vai buscar consumir o máximo que puder, porque ela sabe que, em seguida, pode vir um ciclo de escassez. Esses ciclos de abundância e escassez também podem levar à obesidade”, explica a professora.

 

A especialista explica que uma alimentação ruim é o ponto central nesses casos. Se pode haver escassez de comida no caso da desnutrição, na obesidade, a alimentação provavelmente é rica em alimentos ultraprocessados, que são ricos em energia, mas que carregam poucos nutrientes. “E muitas vezes esses alimentos são mais baratos, mais acessíveis e estão mais disponíveis nos locais de moradia, especialmente locais mais pobres”, complementa Dirce Marchioni.

 

Gráfico de barras indica a probabilidade de cada grupo social estar abaixo do peso. Os grupos incluem critérios de gênero, raça e situação alimentar. Os grupos "Mulher, branca, em segurança alimentar" e "Mulher, negra, em insegurança alimentar" têm as maiores probabilidades.

Gráfico de barras indica a probabilidade de cada grupo social ter obesidade. Os grupos incluem critérios de gênero, raça e situação alimentar. Os grupos "Mulher, branca, em insegurança alimentar" e "Mulher, negra, em insegurança alimentar" têm as maiores probabilidades.

Gráficos de probabilidade de estar acima ou abaixo do peso, sendo o grupo de referência os homens brancos em segurança alimentar – Gráficos: Isabela Nahas/Jornal da USP, com informações do artigo

 

 

A má nutrição não é a mesma para todos

 

Segundo a organização global de coleta de dados Development Initiatives, a fome afetou 9,1% da população mundial em 2023. Ao mesmo tempo, uma em cada três pessoas têm sobrepeso ou obesidade, de acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) em 2024. Os autores do artigo dizem que esses dois fatores estão relacionados por conta da forma como o mundo produz os alimentos.

 

O estudo teve como base a teoria da Sindemia Global, proposta em 2019 pelo professor Boyd Swinburn, da Escola de Saúde da População da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, e colegas. O termo sustenta que, hoje em dia, mudanças climáticas, obesidade e desnutrição estão conectadas. Isso porque a forma como se produz alimentos tem desvalorizado a alimentação saudável, ao mesmo tempo em que contribui para a degradação ambiental.

 

De acordo com Dirce Marchioni, o ser humano precisa de uma alimentação diversa, mas a valorização da monocultura é prejudicial para a biodiversidade. Além disso, comidas que vêm da Europa são colocadas acima do alimento típico brasileiro, mesmo este sendo rico em nutrientes. O desperdício de alimentos é outra face do problema: na cadeia de produção do País, se perde 30% deles. “A questão aqui é essa busca pela segurança alimentar, que significa ter alimentos em quantidade, mas também em qualidade”, ressalta a professora.

 

Nesse cenário, diferentes grupos sociais podem enfrentar desafios diversos na questão alimentar. “O que o nosso artigo traz é que essa sindemia afeta grupos de forma desproporcional. Portanto, qualquer medida [pública] deve considerar obrigatoriamente as desigualdades sociais, já que a exposição à má nutrição não é a mesma para todos”, pontua Sávio Gomes, professor do Departamento de Nutrição da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e autor principal do estudo. Essa estratégia adota o conceito acadêmico de interseccionalidade.

 

A interseccionalidade, de acordo com o artigo, “concentra-se na relação e nas interações entre diferentes fatores e níveis da sociedade, em vez de examinar fatores individuais, para determinar como situações (neste caso, a má nutrição) ocorrem entre grupos populacionais e áreas geográficas”.

 

Mulheres brancas em segurança alimentar, por exemplo, têm menos chances de terem obesidade ou sobrepeso do que mulheres negras em insegurança, mas os dois grupos têm a mesma chance de estarem abaixo do peso. Dirce Marchioni atribui essa questão aos padrões sociais de beleza, que consideram que pessoas magras são mais bonitas e, por isso, as brancas em segurança escolhem não comer o suficiente, a fim de alcançar essa magreza. No entanto, ela afirma que, para uma análise completa, seria preciso ir além dos dados.

 

 

O estudo continua

 

Segundo Sávio Gomes, os pesquisadores pretendem continuar a realizar análises com interseccionalidade. Alguns dos objetivos são estudar a insegurança alimentar em pessoas transexuais na Paraíba e aplicar a interseccionalidade às variáveis do ambiente alimentar. “O grupo está disponível para conversar com os gestores e produzir relatórios técnicos. A ideia é que essas informações circulem ativamente para informar o poder público e ajudar a traçar novos caminhos”, fala o professor.

 

Dirce Marchioni cita que o grupo de pesquisa está interessado em analisar a relação da insegurança alimentar com o risco de doenças crônicas, como as cardiovasculares e de saúde mental. A professora também diz que fazer estudos mais qualitativos, em contato com as pessoas, pode trazer outras perspectivas.

 

“Entender relações que têm sido demonstradas em outros estudos é importante para as políticas públicas. É mais uma forma de nós entendermos como diminuir o risco, como fazer em relação às doenças cardiovasculares, doenças crônicas, tratando desde a infância, desde a gestação”, afirma a professora.

 

*Estagiária sob supervisão de Silvana Salles. Com informações da Agência Bori

**Estagiário sob orientação de Moisés Dorado

 


topo