Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Jurisprudência TJSP - Anulação de doação de imóvel. Idoso declarado incapaz. Vício de vontade

segunda-feira, 15 de março de 2021, 17h41

DOAÇÃO – Anulação – Autor, interditado, que, pouco antes da interdição, havia doado à ré o seu único imóvel – Doação ocorrida sob vício de vontade – Exames médicos efetuados no âmbito da interdição do autor doador que indicam que, quando da doação, o autor não era dotado de efetiva intelecção dos atos que praticava – Ré que se aproveitou desta circunstância, tendo agido de modo semelhante com outro idoso à mesma época – Danos morais e materiais – Ocorrência – Apelo não provido, com observação. (TJ-SP - AC: 10152753920188260196 SP 1015275-39.2018.8.26.0196, Relator: Rui Cascaldi, Data de Julgamento: 02/03/2021, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 02/03/2021).

 

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Registro: 2021.0000149800

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1015275-39.2018.8.26.0196, da Comarca de Franca, em que é apelante (...), são apelados (...)

ACORDAM , em sessão permanente e virtual da 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: Conheceram em parte do recurso e, na parte conhecida, negaram-lhe provimento. V.U. , de conformidade com o voto do relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores FRANCISCO LOUREIRO (Presidente) E CHRISTINE SANTINI.

São Paulo, 2 de março de 2021.

RUI CASCALDI

Relator

Assinatura Eletrônica

PODER JUDICIÁRIO

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VOTO Nº: 46368

APEL.Nº: 1015275-39.2018.8.26.0196

COMARCA: FRANCA

APTE. : 

APDO. : (...) (INTERDITADO)

JUÍZA :  

DOAÇÃO Anulação Autor, interditado, que, pouco antes da interdição, havia doado à ré o seu único imóvel

Doação ocorrida sob vício de vontade Exames médicos efetuados no âmbito da interdição do autor doador que indicam que, quando da doação, o autor não era dotado de efetiva intelecção dos atos que praticava Ré que se aproveitou desta circunstância, tendo agido de modo semelhante com outro idoso à mesma época Danos morais e materiais Ocorrência Apelo não provido, com observação

Trata-se de apelação contra a sentença que julgou parcialmente procedente a ação de anulação de doação c/c indenizatória, para anular a doação feita pelo autor, (...), à ré, (...), do imóvel matriculado sob o nº (...) do 1º Cartório de Registro de Imóveis de Franca (fls. 56/59); reintegrá-lo na posse do bem; condená-la a restituir ao autor R$ 629,96, corrigidos desde março de 2018 e acrescidos de juros legais desde a citação, bem como a lhe restituir os valores que recebeu pelo aluguel do imóvel do autor, a serem apurados em liquidação; condená-la a indenizá-lo, por danos morais, em R$ 10 mil, corrigidos desde a publicação da sentença e acrescidos de juros legais desde 06.03.2018, data da outorga da escritura de doação; e indeferir os demais pleitos indenizatórios por danos materiais. Condenou-se a ré, ainda, nos ônus sucumbenciais, arbitrada a honorária em 10% da condenação.

Em recurso, a ré sustenta que não restou demonstrado que, especificamente à época da doação, o apelante não tinha capacidade ter-lhe doado o imóvel; que, se o tabelião lavrou a escritura, era porque o autor gozava plenamente de sua capacidade civil; e que, assim, a doação não deve ser anulada; que não há, ainda, danos, morais ou materiais, a serem ressarcidos ao autor; e que, se mantida a anulação da doação, seja ressarcida pelos valores que despendeu com a transação, para o pagamento

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de despesas cartorárias para lavrar a escritura de doação e com o pagamento de dívidas que os inquilinos do imóvel deixaram após saírem do bem, relativamente às contas de consumo.

Contrarrazões às fls. 520/526.

Manifestou-se a douta Procuradoria Geral de Justiça pelo desprovimento do recurso (fls. 550/554).

É o relatório .

O apelo não prospera.

Isto porque a ré não ofereceu argumento algum capaz de alterar os fundamentos da decisão recorrida, da lavra da Juíza Adriana Gatto Martins Bonemer, da 5ª Vara Cível da Comarca de Franca, razão pela qual são adotados como razão de decidir, nos seus exatos termos:

“I - O autor, em 06/03/2018, através de escritura pública (fls. 27/34), doou para a requerida seu único imóvel, objeto da matrícula nº (...), do 1º CRI de Franca (fls.56/59), reservando para si usufruto vitalício.

O autor está interditado, desde 13/11/2018 (fls. 419/422).

De acordo com estudo social, realizado no processo de interdição, em 04/10/2018 (fls. 383), a assistente social relata que 'na condução da entrevista é possível identificar que o mesmo é pessoa com baixa compreensão para situações que exigem maior elaboração cognitiva e muito simplório, crédulo, na condução de sua interação e relacionamentos com terceiros)'.

Ainda, segundo conclusão do laudo médico psiquiátrica, produzido no referido processo de interdição, juntado às fls. 416/418, '...o autor apresenta um baixo nível sociocultural e há descrição de dificuldade de aprendizado na infância (possível nível intelectual limítrofe). O quadro atual é no máximo compatível com uma deficiência cognitiva leve e provavelmente devido a estes fatores desenvolve baixa crítica e prejuízo na capacidade de entendimento foi de alguma maneira ludibriado'.

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Assim, os laudos técnicos supra mencionados demonstram que a incapacidade do doador já estava presente ao tempo da doação, ocorrida em 06/03/2018, o que justifica a anulação do negócio jurídico, em razão de sua incapacidade mental.

II - O dano moral restou evidenciado, posto que é evidente a constrangedora situação do autor, que dispôs de seu único bem, em favor da requerida, que se aproveitou de sua condição de incapaz para a prática do ato. Considerando as circunstâncias do caso, arbitro a indenização, em R$ 10.000,00.

III - No tocante aos danos materiais, a requerida confessou que levantou o valor da aposentadoria do autor, mas apenas de um mês. Esse valor, ou seja, R$ 629,26 (fls. 35) deverá ser restituído ao autor, posto que não há prova de que tenha revertido em seu favor. No tocante aos demais meses, não há prova de que a requerida tenha levantado tais valores.

Ainda, os aluguéis recebidos pela requerida, referentes ao imóvel do autor, deverão lhe ser restituídos, em valor a ser apurado em liquidação de sentença.

Não há prova dos demais danos materiais alegados.” (fls. 485/486)

Segundo o art. 252 do Regimento Interno deste TJSP, com redação dada pelo Assento Regimental nº 562/2017, “Nos recursos em geral, o relator poderá limitar-se a ratificar os fundamentos da decisão recorrida, quando, suficientemente motivada, houver de mantê-la, apreciando, se houver, os demais argumentos recursais capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada no julgamento”.

Quanto a isso, já se pronunciou o STJ, no julgamento do REsp nº 662.272/ES, de relatoria do Min. João Otávio de Noronha:

“PROCESSUAL CIVIL. ACÓRDÃO PROFERIDO EM EMBARGOS DECLARATÓRIOS. RATIFICAÇÃO DA SENTENÇA. VIABILIDADE. OMISSÃO INEXISTENTE. ART. 535II, DO CPC. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO.

1. Revela-se improcedente suposta ofensa ao art. 535 do CPC quando o Tribunal de origem,

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ainda que não aprecie todos os argumentos expendidos pela parte recorrente, atém-se aos contornos da lide e fundamenta sua decisão em base jurídica adequada e suficiente ao desate da questão controvertida.

2. É predominante a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em reconhecer a viabilidade de o órgão julgador adotar ou ratificar o juízo de valor firmado na sentença, inclusive transcrevendo-o no acórdão, sem que tal medida encerre omissão ou ausência de fundamentação no decisum.

3. Recurso especial não-provido.”

No mesmo sentido, os seguintes julgados: REsp nº 641.963/ES, 2ª T., Min. Castro Meira; REsp nº 592.092/AL, 2ª T., Min. Eliana Calmon; e REsp nº 265.534/DF, 4ª T., Min. Fernando Gonçalves.

Diante dos fatos esposados, a circunstância de o tabelião ter lavrado a escritura de doação não retira do ato jurídico o nítido vício da vontade do autor ao praticá-lo, tendo em vista a sua baixa cognição acerca dos atos da vida em geral.

Tanto é assim que foi justamente a sua baixa intelecção dos atos da vida em geral que levou à sua interdição no âmbito do processo nº 1008077-48.2016.8.26.0196.

Atente-se, neste sentido, ao excerto a seguir colacionado, tirado do estudo pericial realizado no âmbito daquele processo de interdição, ajuizado por sua irmã e curadora:

“Há pouco mais de um ano, a irmã percebeu que ele estava pior e, orientada pelo CRAS de seu bairro e por um médico de família que consultou, foi orientada que precisava morar com alguém.

Arrumou, então, um cômodo no fundo de sua casa, colocou forro e deixou-o 'ajeitadinho', mas quando o levou lá, ele não aceitou e pediu para voltar para sua casa.

Depois disso é que apareceu esta 'senhora' [a ora ré], a única coisa que sabe é que já foi vizinha dele, de alguma maneira parece que convenceu-o que ia ser sua cuidadora e só se deu conta do que ocorria quando alertada por uma vizinha que tinha mulher que ia lá sempre e colocava o carro dentro da garagem.

A vizinha ficou desconfiada do que fazia lá, foi quando a irmã foi lá e passou a descobrir que ela estava 'se aproveitando' dele, tendo, inclusive, passado o imóvel no nome dela.

O paciente, neste momento, reafirma que foi enganado e não sabe o que estava fazendo, afirmando, também, que ela 'tinha um capataz' que frequentemente junto com ela.

Desde 4 de junho está morando com a irmã, que o acompanha.

Além de problemas nervosos desde a infância, desenvolveu doença de Parkinson há cerca de vinte anos e também é hipertenso.

Faz uso de Amantadina 100 mg (antiparkinsoniano) e medicação para hipertensão.” (fls. 416/417)

Ora, pela experiência comum (art. 375, primeira parte, do Código de Processo Civil), não faz qualquer sentido que uma pessoa, em seu estado normal de memória, simplesmente doe seu único bem a terceiro com quem não possui qualquer tipo de relação mais profunda, ainda, mais alguém como a ré, que fora sua vizinha muitos anos antes.

No específico caso da ré, o ato jurídico de doação, ao que tudo indica, se revestiu de evidente má-fé de sua parte, quando se tem em conta que a mesma ré tentou proceder com expediente semelhante em relação a outro senhor idoso, (...), de quem ela adotou o sobrenome, tendo com ele se casado, mediante vício de vontade dele que, já bem idoso, terminou por contrair matrimônio com ela sem que efetivamente soubesse o que estava a fazer, e, durante o matrimônio, ela tentou transferir imóvel daquele idoso para o nome de sua filha e movimentava valores do então marido sem a exata ciência dele, ao mesmo tempo em que o autor lhe transferira o imóvel, por meio do ato jurídico que ora se anula.

Em tempo, anote-se que o casamento com (...) também foi anulado, no âmbito da ação de anulação de casamento nº 1021495-24.2016.8.26.0196, já transitada em julgado desde 15.12.2019.

Tal ordem de coisas induz ao acerto da

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condenação da ré ao pagamento de indenização por danos morais e materiais.

Por fim, não se conhece dos pedidos recursais de ressarcimento dos valores despendidos com as despesas decorrentes da escritura de doação e dos prejuízos havidos com a locação do imóvel do autor, vez que não formulados na primeira instância, de modo que sua eventual apreciação nesta instância configuraria inovação recursal.

Majora-se a honorária sucumbencial, nos termos do art. 85§ 11, do Código de Processo Civil, para 13% do valor da condenação.

Isto posto, CONHECE-SE PARCIALMENTE do recurso e, na parte conhecida, NEGA-SE-LHE PROVIMENTO , com observação quanto à majoração recursal da honorária dos patronos do apelado.

RUI CASCALDI

Relator


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