OPINIÃO - LGPD em evidência: as políticas do WhatsApp e a proteção dos adolescentes
terça-feira, 04 de maio de 2021, 08h09
4 de maio de 2021, 6h03
Por Henrique Almeida Bazan Castanheira e Henrique Rabelo Quirino
Logo no início de 2021, os brasileiros foram surpreendidos com a notícia de que o WhatsApp, aplicativo mensageiro mais popular do país (e um dos mais populares do mundo), promoveria diversas mudanças em sua política de privacidade e termos de serviço. Todos os usuários que não efetuassem o aceite até o dia 8 de fevereiro poderiam sofrer restrições na operabilidade da plataforma. Em um turbilhão de alarmismo e desconfiança, a repercussão negativa da mudança fez com que a WhatsApp LLC, empresa do grupo Facebook Inc., adiasse a mudança no Brasil. Agora, os novos termos passam a valer no próximo dia 15. Quem não quiser assentir terá de recorrer a concorrentes como Telegram, Viber e WeChat.
Entre os diversos pontos dignos de análise nas novas políticas do mensageiro, destaca-se a ausência de previsões específicas relacionadas ao tratamento de dados de adolescentes usuários do aplicativo. É sabido que a Constituição Federal garante a crianças, adolescentes e jovens especial proteção da sociedade e do Estado, tratando-os como grupos sujeitos a forma especial de vulnerabilidade. O arcabouço jurídico de proteção à criança e ao adolescente encontra seu principal marco legal na Lei nº. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Os princípios enunciados pelo ECA se interconectam com diversas partes do sistema jurídico, incluindo a nova Lei Geral de Proteção de Dados, que disciplinou de maneira mais clara as regras para a manipulação dos dados pessoais de crianças e adolescentes.
A análise dessas regras e sua confrontação com o sistema de implantação das novas políticas do WhatsApp mostram-se de extrema importância, quando levamos em conta o número de adolescentes que utilizam o aplicativo mensageiro, seja para comunicação diária ou mesmo atividades educacionais. Afinal, não se poderia esperar nada diferente da segunda faixa etária (dez a 15 anos) que mais navega na internet por smartphones, representando 45% dos acessos, conforme levantamento realizado pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação.
Diante desse cenário, analisemos alguns pontos de contato entre os novos termos e políticas do WhatsApp e a recente Lei Geral de Proteção de Dados, à luz dos princípios de proteção à criança e ao adolescente.
WhatsApp em cheque: tratamento de dados de adolescentes
Segundo os próprios termos de serviço da plataforma, a idade mínima para uso da aplicação é de 13 anos. Ou seja, é certo que, com as novas políticas de dados do WhatsApp, haverá tratamento ostensivo e efetivo de dados pessoais de adolescentes (assim definidos pelo artigo 2º do ECA).
A LGPD, como já mencionado, não deixou de tratar de tão delicado assunto. Quando os dados de crianças e adolescentes estiverem em jogo, não haverá espaço para outra base legal de tratamento de dados: o consentimento de pelo menos um dos pais (ou do tutor, se for o caso) é essencial. E mais: não basta o consentimento genérico, devendo ser também "específico e em destaque", nos termos do artigo 14, §1º, da lei. As únicas exceções são o tratamento destinado à obtenção do contato dos responsáveis e o tratamento que vise à proteção da criança, o que não é o caso.
Examinando os novos termos de serviço da plataforma, vê-se que a WhatsApp LLC se precaveu em algum sentido, ao consignar que "além da necessidade de ter a idade mínima exigida para usar nossos Serviços de acordo com a legislação aplicável, se sua idade for considerada insuficiente para validar a aceitação de nossos Termos em seu país, seu responsável legal terá que aceitar nossos Termos em seu nome".
O problema se encontra, evidentemente, na execução da lei por parte da plataforma. Como vimos, no tratamento dos dados pessoais dessas pessoas em situação de vulnerabilidade presumida o consentimento é obrigatório, salvo em situações excepcionais, e deve ser fornecido pelo responsável legal pelo adolescente. Surge, então, o que parece ser a primeira desconformidade das novas políticas do aplicativo mensageiro. Aparentemente, não há qualquer forma de verificação da autenticidade do consentimento oferecido, de forma a garantir (ou pelo menos fazer crer) que tenha sido dado pelos pais ou responsáveis pelo adolescente. Conforme preleciona o §5º do artigo 14 da LGPD, os controladores devem empregar esforços razoáveis, considerando a capacidade tecnológica disponível, para garantir a autenticidade do consentimento firmado. Isso implica, em linhas gerais, assegurar que o consentimento foi aposto por uma pessoa civilmente capaz, bem como garantir que essa pessoa capaz seja um dos genitores ou tutores do adolescente. Pelo menos até o momento, às vésperas da vigência dos novos termos, o WhatsApp não divulgou nenhum mecanismo de aferição desse consentimento legalmente exigido.
E, no caso, não falta disponibilidade tecnológica. Diversas aplicações (a exemplo das fintechs e do gov.br) já realizam, com graus adequados de segurança, verificação da identidade e capacidade dos usuários de seus serviços, através de diversos mecanismos independentes e sobrepostos. Entre eles, incluem-se: envio de cópia de documentos; verificação fotográfica por inteligência artificial; uso de certificação digital homologada pela ICP-Brasil; verificação em parceria com bancos credenciados; e assinatura eletrônica reforçada por geolocalização e IP, entre outros.
A segunda grande desconformidade aparente fundamenta-se na previsão de restrição ao uso do aplicativo na hipótese de não se efetuar o aceite dos termos no prazo determinado pelo WhatsApp. Na seção de "Dúvidas Frequentes" da WhatsApp LLC, encontramos a seguinte previsão: "Você não poderá usar alguns recursos do WhatsApp até aceitar essa atualização. Por um curto período, você ainda poderá receber chamadas e notificações, mas não poderá ler nem enviar mensagens pelo app".
Ou seja, em linhas gerais, a ausência do aceite expresso às novas políticas de privacidade e termos de serviço da plataforma implicará a suspensão do serviço. Se esse tipo de disposição já causa controvérsias jurídicas envolvendo adultos, quando crianças e adolescentes estão em jogo, a situação é ainda mais grave.
Não há dúvidas de que, imbuídos da vontade de permanecer utilizando os aplicativos, adolescentes podem ter sua visão a respeito da matéria ofuscada, o que diretamente afeta sua capacidade de consentimento, efeito que pode se projetar até mesmo sobre seus pais e responsáveis. Essa foi a consideração que levou o legislador, por exemplo, a proibir que os controladores exijam de crianças e adolescentes quaisquer dados além do mínimo essencial para utilização de jogos, aplicações de internet e outras atividades.
É dizer: a própria LGPD já reconheceu, em alguns de seus dispositivos, que a liberdade do consentimento se mostra especialmente prejudicada no caso dos adolescentes, os quais podem não possuir a mesma maturidade para analisar e compreender o conteúdo das novas políticas, nem mesmo quando assistidos por seus genitores.
E, se o consentimento não foi concedido com liberdade, autonomia e autodeterminação, na forma como exige a lei, as consequências jurídicas podem ser graves. Viola-se não apenas aspecto formal da LGPD, mas também direitos da personalidade dos adolescentes, tais como a intimidade, a privacidade e a autonomia. Esses direitos são protegidos pelo ordenamento jurídico e, havendo dano, a plataforma poderá ser civilmente responsabilizada. Essa compreensão também ganha força no princípio geral de que toda ação social ou estatal direcionada a crianças e adolescentes deve buscar o melhor interesse da pessoa em formação, nos termos do artigo 3º da Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989. O princípio, que compõe a espinha dorsal do ECA, também foi adotado integralmente pelo caput do artigo 14 da LGPD.
Portanto, considerando a existência aparente desses dois desvios, não restam dúvidas de que as novas políticas do aplicativo mensageiro devem ser, em tempo hábil, reexaminadas pela WhatsApp LLC, de forma a garantir sua plena conformidade com a LGPD e com as normas jurídicas relativas à proteção dos adolescentes, sob pena de sujeitar a pessoa jurídica às sanções previstas pelo diploma legal. O grande desafio será unir a segurança e a proteção exigidas pela lei brasileira à praticidade e à celeridade desejadas pelos usuários do aplicativo. Mas, como sabemos, superar desafios nunca foi um problema para as empresas de tecnologia.
Henrique Almeida Bazan Castanheira é acadêmico de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e estagiário no Alexandre Atheniense Advogados.
Henrique Rabelo Quirino é acadêmico de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e acadêmico (BA Philosophy) em Birkbeck, University of London.