CONJUR: Como um juiz deve ouvir uma criança?
quinta-feira, 27 de novembro de 2025, 10h07
Depois de uma breve pausa, retorno a este espaço para debatermos um tema de suma importância para a proteção de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de atos de violência: a forma como a autoridade judicial deve conduzir a oitiva desses sujeitos, especialmente quando eles manifestam o desejo de prestar o depoimento diretamente ao juiz.
Não se olvida que a Lei nº 13.431/2017 representou um avanço civilizatório ao instituir o depoimento especial, um procedimento que visa a humanizar a escuta e evitar a violência institucional que gera a revitimização. Contudo, é fato que a aplicação prática de suas diretrizes, aqui, especificamente no que tange à oitiva direta pelo magistrado, ainda suscita debates e exige aprofundamento sério e comprometido.
Regra: o depoimento especial é uma audiência adaptada que não acontece da mesma forma que a audiência tradicional e não é conduzida pelo magistrado, mas sim por um profissional técnico especializado
A Lei nº 13.431/2017 inaugurou uma nova era na proteção de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, estabelecendo formas protegidas e humanizadas para a sua oitiva. O depoimento especial (DE), previsto no artigo 8º, é a espinha dorsal desse novo paradigma, reconhecido como um meio de prova de natureza inequivocamente probatória, conforme o artigo 22, caput, do Decreto nº 9.603/2018.
Como já falamos em outras oportunidades, sua finalidade precípua é a produção de provas para a formação da convicção judicial, seja para condenar ou absolver, sempre sob os pilares do contraditório e da ampla defesa, como expressamente consignado no artigo 11, caput, parte final, da Lei nº 13.431/2017. A defesa técnica, inclusive, acompanha o ato em tempo real, formulando perguntas que são adaptadas pelo entrevistador forense (artigo 12, IV e V).
Entretanto, a oitiva de crianças e adolescentes não pode ser uma mera réplica da inquirição de adultos. Tal conduta, longe de ser eficaz, poderia caracterizar uma nova violência (institucional) e, lamentavelmente, revitimizar o depoente. O DE possui características específicas que diferenciam a audiência das demais, justamente o que torna esse depoimento “especial”. Em breve síntese, a oitiva não é conduzida pelo juiz, mas sim por profissional capacitado, respeitando protocolos científicos fundamentados na Psicologia Cognitiva Experimental e ocorre em um ambiente apropriado e acolhedor. O foco primordial é a não revitimização e o respeito à condição peculiar da criança ou adolescente como pessoa em desenvolvimento.
A bem dizer, o DE é uma nova filosofia [1] de escuta que busca enxergar crianças e adolescentes não como meros instrumentos para produção de provas, mas como sujeitos de direitos. É por essa razão que a Lei nº 13.431/2017 estabelece uma sistemática específica para a produção da prova, que não se submete à integralidade do regime ordinário previsto no Código de Processo Penal.
Exceção: o depoimento especial pode, excepcionalmente, ser conduzido diretamente pelo juiz, mas, mesmo assim, não deve acontecer da mesma forma que uma audiência tradicional
O depoimento especial é um procedimento adaptado de escuta protegida que tem como premissa a consideração de que a criança/adolescente não é apenas um objeto passivo de extração de provas, mas sim um sujeito de direitos, com direito de participação ativa, inclusive no planejamento de sua própria oitiva. Consequentemente, apesar de ter o direito de ser ouvida por intermédio de um profissional especializado (assistente social, pedagogo ou psicólogo), a própria lei reconhece ao depoente infantojuvenil o direito de, caso queira, falar diretamente com a autoridade judiciária. É o que está no artigo 12, §1º, da Lei nº 13.431/2017: “À vítima ou testemunha de violência é garantido o direito de prestar depoimento diretamente ao juiz, se assim o entender.”
Acontece que a lei, ao dispor sobre essa possibilidade, não esclarece como essa escuta aconteceria na prática. Seria uma audiência tradicional? A criança/adolescente seria ouvida pelo juiz da mesma forma que um adulto? Tais omissões geraram e ainda geram insegurança jurídica e disparidade de procedimentos entre as comarcas. Nesse cenário de dúvidas e incertezas deixadas por uma regulamentação tímida e sucinta, uma conclusão nos parece inegociável: mesmo quando realizado excepcionalmente pela autoridade judiciária, o DE não pode ser equiparado a uma audiência tradicional e não pode ser realizado nos mesmos moldes desta, devendo conservar algumas características especializantes vocacionadas a garantir a proteção irrestrita dos direitos da criança e do adolescente.
Nesse sentido, aliás, a Resolução 299/2019 do CNJ, em uma tentativa de complementar a lacuna legislativa, deixa claro que todo magistrado brasileiro precisa ser capacitado no Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense (PBEF). Diz o artigo 14, §3º, da Resolução que: “os magistrados devem ser capacitados a tomar o depoimento nos termos do Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense, para a eventualidade de a criança ou o adolescente, vítima ou testemunha, desejar prestar o depoimento diretamente à autoridade judiciária”.
Essa capacitação é fundamental para que o magistrado “saiba” como ouvir uma criança, caso ela manifeste a preferência por depor diretamente a ele. Vale dizer: mesmo se a criança manifestar preferência por ser ouvida pelo juiz (artigo 12, §1º), ainda assim deverá ser ouvida conforme as orientações técnicas do PBEF, ou seja, por questionamentos preferencialmente abertos que lhe oportunizem a livre narrativa sobre os fatos. É o que reforça o artigo 23 da Resolução: “na hipótese da criança e/ou adolescente desejar prestar depoimento diretamente ao magistrado, deverá ser observado o protocolo de entrevista forense”. Portanto, o uso do PBEF é uma premissa inegociável, seja a criança ouvida pelo profissional técnico (assistente social, psicólogo, etc.), seja ela ouvida pelo magistrado.
Contudo, mesmo após a Resolução 299 deixar clara a necessidade uso do PBEF para as oitivas das crianças pelo juiz e, consequentemente, deixar igualmente clara a obrigatoriedade de capacitação da autoridade judiciária, ainda assim importantes dúvidas ainda persistem no campo da atuação prática profissional, especialmente quanto à forma de realização da audiência: como conciliar a oitiva direta pelo juiz com a proteção do depoente vulnerável?
(Alguns) desafios práticos e (algumas) soluções propostas
A verdade é que ainda há muita dúvida entre os juízes sobre como realizar, na prática, essa oitiva direta prevista no artigo 12, §1º, da Lei nº 13.431/2017.
De forma esquematizada, podemos sintetizar as principais indagações assim:
Onde a oitiva acontece? Vale dizer: o juiz deve ir até a sala de depoimento especial ou a criança é quem deve ir até a sala de audiências?
A Recomendação nº 157/2024 do CNJ, que adota o “Protocolo para a escuta especializada e depoimento especial de crianças e adolescentes nas ações de família em que se discuta alienação parental”, oferece uma valiosa orientação a esse respeito. O item 4.20 dispõe: “Em manifestando o(a) entrevistado(a) o interesse em prestar seu testemunho diretamente à autoridade judiciária, esta deverá estar capacitada (art. 26, Decreto nº 9.603/2017; art. 14, Res. nº CNJ 299/2019) para a utilização das estratégias de abordagens aqui indicadas, enquanto protocolo de entrevista, bem como fazer uso de sala reservada, silenciosa, com decoração acolhedora e simples, para evitar distrações”. Note: o Protocolo recomenda que a oitiva direta pelo juiz ocorra em sala reservada, silenciosa e acolhedora, justamente a sala de depoimento especial.
Concordamos integralmente com essa recomendação. Mesmo para adolescentes no final da adolescência e próximos da maioridade (por exemplo, 16/17 anos) ou para adultos jovens entre 18-21 anos (casos em que a tomada do DE é facultativa), hipóteses em que, em tese, de acordo com as condições pessoais do depoente, até seria possível que o ato ocorresse diretamente na sala de audiências, cremos que o ideal seja, realmente, que o juiz (que aqui faria as vezes de um entrevistador forense) esteja sozinho em um ambiente reservado com o depoente, sem a presença das partes. Isso se faz fundamental, principalmente para evitar que o depoente vulnerável tenha contato indesejado com eventuais perguntas revitimizantes que venham da sala de audiências.
Afinal, se juiz e depoente estiverem presentes ali, na sala de audiências, a criança tomará contato com as perguntas antes mesmo do imprescindível “filtro” feito pelo magistrado, o que não se pode tolerar, pois é dever do juiz evitar a submissão do depoente infantojuvenil à violência institucional que gera a revitimização. Da sala de depoimento especial, o juiz fará o filtro das perguntas, preferencialmente por meio do chat da plataforma digital (Microsoft Teams, Zoom, Google Meeting, etc.). Se necessário, poderá sair da sala de depoimento especial e regressar à sala de audiências e dali realizar os debates com as partes sobre a pertinência das perguntas, momento em que a criança ou adolescente deverá estar acompanhada do técnico assistente social ou psicólogo.
Nesse mesmo sentido e de forma ainda mais clara é a Resolução nº 287/2024 do CNMP, que estabelece no caput do artigo 6º que: “o membro do Ministério Público deve cuidar para que a oitiva em juízo da criança e/ou adolescente vítima ou testemunha de violência seja realizada em sala de depoimento especial, por meio de profissional especializado, na forma do art. 11 e art. 12 da Lei nº 13.431/2017, zelando para que o depoimento não ocorra diretamente em sala de audiência pelo formato tradicional”]. Note: é dever do próprio membro do Ministério Público assegurar que o DE não aconteça em sala de audiência tradicional, sendo recomendada a sua realização em ambiente adequado.
O juiz vai à sala de depoimento especial sozinho ou acompanhado do técnico profissional especializado?
A Lei 13.431/2017, a Resolução 299/2019 e o novo protocolo do CNJ para causas de alienação parental não abordam diretamente essa questão. Contudo, a depender da deliberação da autoridade judiciária, entendemos perfeitamente possível que o juiz se valha da atuação conjunta do profissional técnico como ferramenta de apoio. É um arranjo reconhecido, por exemplo, no âmbito do Tribunal de Justiça do Paraná em seu Provimento nº 287/2019, que no artigo 21 dispõe: “Se a criança ou adolescente optar por depor diretamente ao juiz, ela deverá estar acompanhada de um profissional especializado (o técnico) durante a oitiva.”
Apenas nos parece mais adequado o emprego do verbo “poderá” no lugar de “deverá”, conferindo maior flexibilidade a depender das peculiaridades de cada caso e das condições do depoente: o juiz poderá estar acompanhado de profissional técnico especializado durante a oitiva, que pode ajudá-lo na condução da oitiva. O técnico pode ser um valioso auxiliar para garantir a produção de uma prova de maior qualidade mediante o uso do PBEF, a livre narrativa do depoente e questões mais abertas e não sugestivas, agindo como um guia para o magistrado.
Excepcionalidade da oitiva direta pelo magistrado: alerta necessário
Por fim, é essencial ter em devida consideração que a oitiva diretamente pelo magistrado é uma hipótese excepcional. Para deixar claro: de acordo com a sistemática estabelecida na Lei 13.431/2017, a regra, sem sombra de dúvidas, é a oitiva por intermédio do profissional especializado (assistente social, pedagogo, psicólogo, etc.).
Por isso, em minha atuação profissional enquanto magistrado em São Paulo, causa-me surpresa observar que em algumas comarcas a grande maioria das crianças optam por prestar depoimento diretamente para o juiz. Por exemplo: a cada 10 crianças, 9 querem falar diretamente com o juiz. Quando, em verdade, o mais esperado seria o contrário, isto é, que a cada dez crianças, uma quisesse falar com o juiz. Ora, há algo de “estranho” nesse cenário, que liga um sinal de alerta e atenção do magistrado, autoridade a quem compete fiscalizar o setor técnico na boa aplicação do procedimento do depoimento especial.
De fato, essa disparidade me leva a indagar: elas foram esclarecidas adequadamente sobre os seus direitos? A escolha de falar com o juiz foi fruto de um consentimento verdadeiramente informado por parte do profissional técnico, ou é resultado de uma postura sugestiva que, inadvertidamente ou não, induz a criança a falar diretamente com o juiz, retirando o trabalho que seria do técnico? Precisamos refletir sobre essa questão.
A citada Resolução 287/2024 do CNMP destaca a excepcionalidade da audição direta, em seu artigo 6º: “§ 1º O membro do Ministério Público deve velar para que a oitiva em juízo da criança e/ou adolescente vítima ou testemunha de violência pelo formato tradicional, por força do disposto no art. 12, §1º, da Lei nº 13.431/2017, somente ocorra em situações restritas, a seu pedido, após prestados os esclarecimentos devidos pela equipe técnica do juízo responsável pela realização do depoimento especial. § 2º Em caso de oitiva diretamente em juízo, devem ser tomadas todas as cautelas relativas à preparação prévia da vítima ou testemunha e seu resguardo quanto à presença do acusado, situações de ameaça, intimidação ou outras influências externas, assim como do comportamento inadequado dos atuantes no processo”.
A norma deixa claro que o DE diretamente pelo magistrado é excepcional, ficando reservado a situações restritas, depende do pedido do depoente e, necessariamente, deve ser precedido de esclarecimentos por parte dos técnicos (consentimento informado). Ademais, em sendo realizado, a autoridade judiciária deve adotar todas as cautelas para garantir que o ato seja humanizado e acolhedor, não-revitimizante.
Conclusão
A oitiva de crianças e adolescentes é um ato de profunda responsabilidade e exige do Poder Judiciário uma postura de máxima sensibilidade e rigor técnico. Quando a criança ou adolescente manifesta o desejo de depor diretamente ao juiz, essa prerrogativa deve ser respeitada, mas sempre com prudência.
O juiz, nesse cenário, assume um papel que transcende o tradicional, tornando-se um entrevistador forense capacitado, apto a conduzir a oitiva em ambiente acolhedor e com técnicas que respeitem o desenvolvimento peculiar do depoente. A excepcionalidade dessa modalidade de oitiva deve ser preservada, e a escolha da criança deve ser fruto de consentimento informado e livre de qualquer indução.
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[1] Tomamos essa concepção do DE como uma nova filosofia de empréstimo da obra organizada por Santos et al., 2013, p. 23: “o depoimento especial é uma nova filosofia jurídica que eleva crianças e adolescentes à condição de sujeitos contratantes pelo direito à palavra. Dessa forma, expressa uma nova postura da autoridade judiciária, que busca a complementaridade de sua atuação na interdisciplinaridade, particularmente por meio de participação da equipe multiprofissional especificamente formada para realizar a entrevista forense”. Disponível aqui.
FONTE: CONJUR