Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

CONJUR: Todo depoimento judicial de criança deve ser adaptado

terça-feira, 23 de setembro de 2025, 12h32

Caros leitores e leitoras, chegamos ao quinto e último artigo de nossa série sobre a complexa, polêmica e multifacetada relação entre o depoimento especial (DE) e a alienação parental. Ao longo das últimas semanas, navegamos por águas turbulentas: no primeiro artigo, enfrentamos a polêmica questão sobre a necessidade de revogação da Lei nº 12.318/2010; no segundo, esclarecemos que o DE não é um instituto exclusivo da seara criminal, podendo e devendo ser aplicado em múltiplas jurisdições; no terceiro, mergulhamos nas particularidades de sua aplicação no contexto próprio das Varas de Família; e, na semana passada, dissecamos as diferenças metodológicas entre o protocolo geralmente utilizado no âmbito criminal (o PBEF) e o novo Protocolo pensado para as Varas de Família, instituído pela Recomendação nº 157/2024 do CNJ.

 

Neste artigo de encerramento, buscamos dar um passo adiante, expandindo nosso horizonte para além do próprio escopo da Lei nº 13.431/2017. Nosso objetivo é, a partir da “janela de oportunidade” aberta pela Lei nº 14.340/2022 e a “ampliação” [1] do DE para as causas de família em que se discute a alienação parental, analisar a audição de crianças e adolescentes para além das situações em que são vítimas ou testemunhas de violência (e de crimes), propondo uma reflexão sobre o futuro da participação infantojuvenil no sistema de justiça brasileiro, inclusive à luz de experiências estrangeiras.

 

A Lei nº 13.431/2017 foi um inquestionável marco civilizatório. Ao estabelecer um procedimento adaptado para a oitiva de crianças e adolescentes, o Brasil deu um passo gigantesco na proteção dos pequenos contra a violência institucional. Contudo, seu escopo é legalmente delimitado: por sua literalidade, ela se aplica à oitiva de crianças e adolescentes na condição de vítimas ou testemunhas de um ato de violência.

 

Embora tenhamos trabalhado nos artigos anteriores para desmistificar a equivocada ideia de que essa “violência” se restringe ao abuso sexual ou a fatos criminais, é irrefutável que a limitação legal persiste (de lege lata). Ainda hoje, há quem pense que o DE é reservado para casos de violência sexual. Falso: o procedimento se aplica para violências de qualquer natureza, seja ou não sexual. A própria lei (art. 4º) faz menção à violência de natureza física, psicológica, patrimonial e institucional. Ademais, há quem pense que o depoimento especial é “coisa” apenas de processos penais. Falso: o DE pode ser realizado em qualquer situação de violência, seja ela tipificada em lei ou não como crime. Não é necessário que haja crime para que seja tomado um DE. De todo modo, contudo, de acordo com o texto expresso da Lei nº 13.431/2017, o DE se aplica apenas a casos específicos nos quais uma criança ou um adolescente se encontre em uma das duas posições jurídicas: “vítima” ou “testemunha”.

 

A rigor, se uma criança ou adolescente não é, tecnicamente, vítima ou testemunha de uma violência, o procedimento protetivo do DE não se aplicaria. Ela seria, em tese, ouvida pelo modo tradicional — em uma sala de audiências comum, perante o juiz e as partes, sem as adaptações metodológicas e ambientais e as salvaguardas protetivas — ou, o que é mais comum, simplesmente não seria ouvida diretamente nos processos, tendo sua voz mediada exclusivamente por laudos técnicos.

 

É precisamente este o paradoxo que pretendemos enfrentar. Crianças e adolescentes são figuras centrais em uma miríade de processos judiciais nos quais não são vítimas de violência, mas cujas vidas serão profundamente impactadas pela decisão judicial. Assim, a questão que nos guiará é: faz sentido proteger a criança com um procedimento adaptado quando ela fala sobre violência, mas desprotegê-la, submetendo-a ao rito de oitiva tradicional (e, por vezes, revitimizante), quando ela fala sobre o divórcio de seus pais, sua própria adoção ou o regime de convivência que definirá sua rotina? A nosso ver, a resposta é um retumbante não.

 

Participação como um direito fundamental da criança e do adolescente para além da condição de vítima ou testemunha

 

O depoimento especial, tal como concebido na Lei nº 13.431/2017, é, em sua essência, a materialização processual de um direito fundamental muito mais amplo: o direito à participação, consagrado no artigo 12 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989. A Convenção assegura a toda criança “capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança“, determinando que se lhe dê “a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma“.

 

Depor sobre uma violência sofrida ou testemunhada é, sem dúvida, uma forma de participação. Mas o direito de participar não se esgota nessa hipótese. Como já tivemos a oportunidade de defender em outra ocasião, ao analisar se o filho menor poderia depor no divórcio dos pais, a criança é um sujeito pleno de direitos, capaz de formar e expressar opiniões, participar de processos decisórios e influenciar soluções. Infelizmente, como bem aponta Bretz (2023), “muitos são os processos judiciais nas Varas de Família e nas Varas da Infância e da Juventude que trazem a criança e o adolescente não como sujeitos a serem ouvidos, mas sim como objetos de disputa acirrada entre os familiares”.

 

Mudar esse cenário de exclusão é um imperativo ético e legal. Crianças e adolescentes participam (ou deveriam participar) de processos de modificação de guarda, de definição de regime de convivência, de ações de autorização para trabalho artístico (o chamado “alvará judicial”) e até mesmo de sessões de mediação e conciliação, como defendemos em artigo publicado na revista Quaestio Iuris (Uerj).

 

A propósito, nesse exato sentido, o Enunciado nº 26 da I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios do CJF dispõe: “É admissível, no procedimento de mediação, em casos de fundamentada necessidade, a participação de crianças, adolescentes e jovens – respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão — quando o conflito (ou parte dele) estiver relacionado aos seus interesses ou direitos”.

 

Ora, prezado leitor e prezada leitora, alguém duvida que as decisões tomadas nesses processos afetam diretamente as vidas das crianças e dos adolescentes? Pensemos no caso do divórcio dos genitores, citado acima: a sentença judicial certamente terá o condão de implicar decisivamente a vida dessas pessoas, inclusive impondo eventuais mudanças de casa, de escola, de cidade e a reconfiguração de seus laços afetivos mais importantes.

 

Basta pensar em uma decisão judicial que determina a modificação da guarda de uma criança, que passará a morar com o outro genitor em uma nova cidade e, assim, se verá distante de seus amigos de escola e da vizinhança. Podem os pais entabularem um acordo (consensual, mas entre eles, os adultos) no Cejusc sobre essa mudança de guarda ao total arrepio da criança que sofrerá as consequências? Evidentemente que a decisão (do divórcio, da guarda, etc.) não cabe à criança, mas sim ao magistrado (a quem, inclusive, cabe homologar eventual acordo celebrado em audiência de mediação).

 

Mas, a questão que se coloca é: não tem a criança o direito de participação nesses processos, para trazer os seus pontos de vista e opiniões para contribuir na formação do convencimento do julgador? Concordando-se com a possibilidade de ouvir a criança como consectário direto do direito à participação (art. 12 da Convenção), a nova questão subsequente que se coloca é: como ela deve ser ouvida? Em uma audiência judicial “comum”, pela sistemática “tradicional”, tal como prevista no Código de Processo Civil ou Penal? É isto que está em jogo.

 

Para deixar claro: em todos esses casos (divórcio, guarda, visitação, alimentos, mediação, alvará judicial, etc.), a criança não é “vítima” nem “testemunha” de violência. Ela é, na verdade, a principal interessada no resultado do processo. Historicamente, ela foi tratada como um mero “objeto” do processo: em alguns casos lhe é negada, inclusive, a legitimidade processual para figurar como parte da demanda.

 

Negar-lhe um procedimento de oitiva adaptado, sob o pretexto de que a Lei nº 13.431/2017 não se aplica a esses casos, é criar uma hierarquia de proteção inaceitável: a criança vítima ou testemunha de violência merece um ambiente acolhedor e uma metodologia cuidadosa, mas a criança que fala sobre a reestruturação de sua própria família (participando do processo de divórcio de seus genitores), não. Trata-se de uma contradição insustentável.

 

O direito à participação, como nos ensina Lansdown (2021), não é apenas o direito de falar, mas o de levar a sério o que eles têm a dizer. E para que uma criança possa se expressar de forma autêntica e para que possamos levar a sério sua manifestação, o método da escuta é tão importante quanto o direito em si. Uma oitiva realizada em um ambiente intimidador e com uma metodologia inadequada não produz uma manifestação livre, mas sim uma resposta condicionada pelo medo e pela pressão.

 

Depoimento especial como ‘a ponta do iceberg’

 

A compreensão de que a participação infantojuvenil transcende os casos de violência nos leva a uma nova perspectiva, brilhantemente articulada pelo magistrado e professor Eduardo Rezende Melo em cursos que organizou na Escola Paulista da Magistratura (EPM). Referência nacional e mundial na defesa dos direitos das crianças, o doutor Eduardo organizou importantes cursos que aprofundaram a temática da participação das crianças nos processos judiciais para muito além do âmbito estrito do depoimento especial tal como previsto na Lei nº 13.431/2017.

 

Aqui, merece especial menção o “Curso sobre participação de crianças e adolescentes em audiências em processos de proteção e de família”, promovido em 2022. Neste curso, a partir do estudo do direito comparado, analisando as práticas de países como França, Argentina, Espanha e Nova Zelândia, o magistrado identifica uma variedade de formas de participação, que vão muito além da simples colheita de um testemunho.

 

Com efeito, é possível reconhecer quatro diferentes categorias, a saber:

 

a) Escuta: um modelo de participação mais proativo, no qual a criança pode ter o status de parte ou pessoa interessada no processo, com representação legal autônoma e plenos direitos processuais, influenciando diretamente o curso da demanda judicial;
b) Consulta: a criança é consultada sobre questões específicas que a afetam diretamente, como ocorre no Brasil nos processos de adoção, quando o consentimento do maior de 12 anos é legalmente exigido. Nesses casos, a opinião da criança é um elemento central para a validade do ato;
c) Encontro: uma oportunidade para a criança simplesmente trazer sua história e seus sentimentos ao juiz, sem uma finalidade probatória estrita. O juiz assume uma postura mais passiva, de escuta empática, abrindo um canal para que a criança se sinta partícipe do processo, ainda que seu relato não seja formalmente enquadrado como prova; e
d) Depoimento: a criança presta um depoimento formal, com a preocupação de se obter informações para a formação do convencimento do juiz, garantindo-se o contraditório e o direito a um processo equitativo para as outras partes. É exatamente aqui que se insere o depoimento especial a que alude a Lei nº 13.431/2017.

 

De fato, o DE brasileiro se enquadra na última categoria, que geralmente é a forma mais “pobre” de participação, pois tende a objetificar a criança como fonte de prova, em vez de reconhecê-la em sua plenitude como sujeito processual.

 

O dr. Eduardo coordenou uma pesquisa mundial comparativa realizada no âmbito da Associação Internacional de Magistrados da Juventude e da Família. Os resultados da pesquisa podem ser acessados aqui.

 

Uma iniciativa internacional que reconhece a participação das crianças e adolescentes nos processos judiciais de forma muito mais ampla do que apenas o depoimento quando vítimas ou testemunhas e que é digna de nota é o “Projeto 12 — Justiça para Crianças”, desenvolvido em Portugal. O projeto, cujo nome é clara referência ao artigo 12 da Convenção, visa contribuir para uma justiça acessível e centrada nas necessidades e nos direitos da Criança. Para maiores informações, clique aqui.

 

É preciso entender que o depoimento especial, tal como hoje positivado na lei brasileira, representa apenas “a ponta do iceberg”. É a manifestação mais visível e regulamentada do direito de participação, mas sob a superfície existe um corpo imenso e ainda pouco explorado de outras formas e contextos em que a voz da criança deve ser acolhida pelo sistema de Justiça.

 

Conclusão

 

Ao final desta jornada de artigos, a trajetória de nossa reflexão se revela com clareza. Partimos de um problema específico e controverso — a aplicação do DE em casos de alienação parental — para chegar a uma conclusão muito mais ampla e transformadora. A Lei nº 14.340/2022 e a subsequente Recomendação nº 157/2024 do CNJ, com seu novo protocolo, foram fundamentais não apenas para regulamentar a oitiva protegida na alienação parental, mas principalmente por servirem como um catalisador, forçando o sistema de justiça a admitir que o depoimento especial não é “coisa” só do Direito Penal.

 

Contudo, é preciso ir mais além. O grande legado desse debate deve ser a superação da própria limitação da Lei nº 13.431/2017. As balizas e diretrizes técnicas do novo Protocolo do CNJ para as Varas de Família são tão universalmente benéficas e alinhadas aos melhores interesses da criança que não faz sentido restringi-las aos casos criminais e de alienação parental.

 

A nosso ver, esses princípios deveriam ser observados em toda e qualquer oitiva judicial de crianças nas Varas de Família e da Infância e Juventude, seja em uma modificação de guarda, em um processo de adoção ou de destituição do poder familiar. Ainda que não se dê ao ato o nome formal de “depoimento especial”, é urgente que a metodologia adaptada se torne o padrão, e não a exceção.

 

Se o ordenamento jurídico brasileiro começou com a “parte” — a proteção da criança e adolescente vítima ou testemunha de violência —, a evolução natural e necessária é que cheguemos, enfim, ao “todo”: a garantia de uma participação adaptada, respeitosa e significativa para toda criança e adolescente que tenha contato com o sistema de Justiça.

 

FONTE: CONJUR


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