Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

CONJUR - A Convenção de Haia garante proteção às crianças expostas à violência doméstica em seus lares?

quarta-feira, 27 de agosto de 2025, 14h35

“Quase 80% dos responsáveis pela retenção ilícita de crianças são mulheres. Por que isso não ocorre em relação aos pais? Porque é uma questão do patriarcado” [1], disse o ministro Alexandre de Moraes ao proferir voto nas ADIs 4.245 e 7.686 que versa sobre o artigo 13, “b” da Convenção de Haia. Neste mês, o Supremo Tribunal Federal já formou maioria (oito ministros) em torno do voto do ministro relator, Luís Roberto Barroso, no sentido de impedir que crianças e adolescentes sejam obrigados a retornar ao país de origem imediatamente, em casos nos quais haja acusação de violência doméstica.

 

Em jogo está o reconhecimento de que uma mulher não pode ser obrigada a escolher entre: 1) perpetuar-se em um ciclo de violência fora do Brasil ou 2) permanecer com seu filho ou sua filha ao seu lado. Nesses casos excepcionais, a resistência em devolver a criança não pode configurar um sequestro internacional nos termos da Convenção de Haia. Entender que se trata de uma exceção é uma forma de proteger os direitos da própria criança ou adolescente, que merece viver longe de um cenário de violência. O tema é delicado e exige responsabilidade do Estado brasileiro.

 

1. Disposições da Convenção de Haia sobre Sequestro Internacional de crianças

 

A Convenção de Haia, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 3.413/2000, trata dos Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças e possui como objetivo principal proteger a criança, no plano internacional, contra deslocamentos ou retenções ilícitas, assegurando o retorno imediato ao Estado de residência habitual e garantindo o respeito aos direitos de guarda previstos naquele Estado.

 

Brasil, Estados Unidos, Alemanha, França, Japão, Argentina, Portugal, Canadá e China são alguns dos países signatários da convenção.

 

É considerada ilícita a transferência ou a retenção de uma criança quando há violação ao direito de guarda estabelecido conforme a legislação do Estado onde mantinha residência habitual. Apesar da importância jurídica e do papel de proteção da Convenção, na prática, ela deixa lacunas quando o caso envolve violência doméstica contra a mulher, principalmente quando ela se muda para outro país em busca de proteção para si e para a criança.

 

Pela regra estabelecida no artigo 12, a criança deverá retornar imediatamente ao Estado de residência habitual quando a retenção ou o deslocamento ilícito for constatado. Caberá, assim, à autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, em cumprimento ao acordo internacional, determinar que a criança retorne de imediato ao seu Estado de origem. Considera-se que o seu retorno ao país onde morava é sempre a melhor solução.

 

Não se trata, porém, de uma regra absoluta. O artigo 13 prevê algumas exceções em que o retorno da criança pode ser negado. A alínea ‘b’ do artigo 13 estabelece, por exemplo, que havendo risco grave de que o retorno exponha a criança a perigo físico ou psíquico, ou a coloque em situação intolerável, a autoridade poderá recusar o retorno, sendo necessária a comprovação da situação de risco.

 

Percebe-se que a norma possui ênfase sobre o risco direto à criança, e não sobre o risco à genitora — ignorando-se que eventual violência contra a mãe impacta diretamente no desenvolvimento do filho.

 

2. Lacuna protetiva em casos de violência doméstica ou de gênero contra a genitora

 

O debate se mostra relevante quando se está diante de um comprovado caso de violência doméstica ou de gênero contra a genitora e não diretamente contra a criança. Isto porque o texto da convenção é restrito aos casos de risco grave à criança, como hipótese de exceção à obrigação de ordenar o retorno imediato da criança ao Estado de origem (artigo 13, b).

 

Os reflexos da violência de gênero sobre os filhos são evidentes e deveriam ser considerados na interpretação das hipóteses que autorizam a recusa à devolução da criança ao Estado de origem. Deixar de considerar a violência doméstica nesse contexto é ignorar todo um sistema protecionista desenvolvido pelo ordenamento jurídico brasileiro.

 

A Lei Maria da Penha reconhece a violência doméstica e familiar contra a mulher como violação de direitos humanos, determinando medidas protetivas urgentes para salvaguardar a integridade física, psíquica e moral da vítima.

 

O artigo 5º da referida lei define que a violência doméstica pode se dar tanto no âmbito físico quanto psicológico, patrimonial, sexual e moral, sendo que seus efeitos atingem todo o núcleo familiar. A proteção da mulher está diretamente relacionada à proteção de seus filhos.

 

A lacuna normativa na regra internacional ganha especial dimensão quando confrontada com o número crescente de brasileiras residentes no exterior que têm registrado casos de violência de gênero ou doméstica. No ano de 2023, foram 1.556 mulheres, sendo que, deste total, houve disputa de guarda em 808 casos, conforme dados compilados pelas repartições consulares pelo mundo [2].

É necessário, portanto, promover um diálogo entre a Convenção de Haia e a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), a fim de assegurar que a mulher vítima de violência doméstica – em qualquer das suas espécies – não se torne refém de uma obrigação de retorno que, na prática, manteria o ciclo de abuso ou de se sujeitar a uma grave e dolorosa separação dos seus filhos.

 

3. As ações diretas de inconstitucionalidade sobre o tema

 

A aplicação da Convenção de Haia, como dito, é tema de duas ações diretas de inconstitucionalidade, que estão sendo julgadas em conjunto pelo Supremo Tribunal Federal, a ADI 4.245 [3], com objeto mais amplo, e a ADI 7.686 [4], que trata especificamente do artigo 13, “b”.

 

Ambas ações buscam conferir interpretação conforme à Constituição ao artigo 13, alínea “b” da referida Convenção, para incluir casos de suspeita ou evidência de violência doméstica em país estrangeiro como situação capaz de submeter as crianças a “perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável”, caracterizando tais hipóteses como impeditivas do retorno dessa criança ao lar do agressor, em consonância com os princípios da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF), da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais (artigo 4º, II, CF), da previsão constitucional de garantia pelo Estado de mecanismos para coibir a violência no âmbito de relações familiares (artigo 226, §8º, CF) e do princípio da prioridade absoluta (artigo 227, caput, CF).

 

Em recente decisão, neste mês de agosto de 2025, o relator ministro Luís Roberto Barroso proferiu seu voto julgando parcialmente procedentes os pedidos das mencionadas ADIs, para conferir interpretação conforme ao artigo 13(1)(b) da Convenção da Haia, para reconhecer que a exceção ao retorno imediato da criança por risco grave à sua integridade física, psíquica ou situação intolerável aplica-se aos casos de violência doméstica contra a mãe, ainda que a criança não seja vítima direta, desde que demonstrados indícios objetivos e concretos da situação de risco, em consonância com o princípio do melhor interesse da criança (artigo 227, CF88) e da perspectiva de gênero (artigos 1º, III, e 226, § 8º, CF/88), além de outras determinações procedimentais e de organização judiciária para conferir celeridade e tramitação preferencial aos processos de restituição internacional de crianças.

 

Destaca-se, contudo, a ressalva contida na parte final do voto de que a dispensa da repatriação dependerá da comprovação desses indícios.

 

Tal exigência merece especial atenção, considerando-se as conhecidas dificuldades probatórias nos casos de violência doméstica não física, de natureza psicológica, moral ou patrimonial. Nesse contexto, a análise da prova da violência deve observar as diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ e a orientação de alta valoração das declarações da mulher vítima de violência de gênero, não se cogitando de desequilíbrio processual.

 

Conclusão

 

A conclusão a que se chega, amparada no entendimento atual e majoritário do Supremo Tribunal Federal no julgamento das ADIs 4.245 e 7.686, é que a interpretação da Convenção de Haia não pode ocorrer de forma isolada, devendo considerar o sistema protetivo da Lei Maria da Penha; as garantias constitucionais à integridade física e psíquica e o princípio da proteção integral e prioritária da criança (ECA), de forma que seja afastado o retorno imediato da criança subtraída quando comprovado que a genitora sofreu violência doméstica e que tal situação comprometeria o ambiente saudável de desenvolvimento familiar.

 

É inequívoco que retornar uma criança ao país de origem, forçando a mãe a reencontrar-se com o agressor ou, alternativamente, obrigá-la a se separar do seu filho, viola não apenas a proteção integral da criança, mas também o sistema de garantias protetivas da mulher. É preciso, portanto, que seja promovido um diálogo das fontes, permitindo-se a aplicação conjunta e coordenada de normas de diferentes origens, de modo a harmonizar o compromisso convencional de combate ao sequestro internacional de crianças com a obrigação constitucional e infraconstitucional de proteger mulheres e crianças contra a violência doméstica.

 

 

FONTE - CONJUR

 


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