CONJUR: Crianças e adolescentes como objeto de consumo: adultização no mercado digital
segunda-feira, 25 de agosto de 2025, 18h56
Há poucas semanas, o influenciador Felipe Bressanim Pereira, mais conhecido como Felca, viralizou nas redes sociais ao divulgar um vídeo no qual denunciava na internet a prática de exploração, sexualização e adultização de menores.
No caso, o vídeo de Felca foi ao ar em seis de agosto de 2025 e atingiu a marca de 42 milhões de visualizações, tendo o título “Adultização”. O vídeo tinha por base exposição de menores realizadas pelo influenciador Hytalo Santos, que criara uma espécie de reality show ao estilo Big Brother, mas com menores de idade, e no qual o tema da sexualização era intenso. No presente momento, o referido influencer Hytalo Santos e seu parceiro, Israel Nata Vicente, encontram-se preventivamente presos.
Mas a crítica de Felca focou em algo muito maior do que apenas a atuação de Hylato num caso concreto, havendo também outros recortes, com outros programas. Felca, usando de sua capacidade de atingir milhares de pessoas na internet, conseguiu construir um vídeo de advertência a pais, e à sociedade, sobre a exposição de menores na internet, com vistas a uma adultização precoce e sexualização, que é vedada, entre outros, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069/90.
Observando-se o programa do Hytalo, antes de ir para a casa do Big Brother juvenil, notam-se pais despedindo-se de filhos, ou seja, os pais sabiam para onde os filhos iam, embora, talvez, cegos pelas promessas de sucesso digital, com ganhos econômicos, seguidores etc., tenham permitido que seus rebentos fossem participar do programa.
Adolescentes acabavam sendo emancipados por pais, em troca de celulares para esses pais ou de pagamento de aluguéis para os familiares. Em setores mais humildes da sociedade, nos quais há uma carência de recursos variados, em especial, econômicos, é mais fácil seduzir pais e adolescentes para programas dessa estirpe com promessa de ganhos financeiros. Até porque os envolvidos não têm a preparação intelectual-formal, muitas vezes, para tecer uma crítica interna e externa a esse tipo de cenário. Enfim, dos mais vulneráveis socialmente é mais fácil obter o objetivo almejado.
Mas tal postura não fica restrita a esses grupos, pois não raro é ver celebridades aparecendo em vídeos curtos, em apps e plataformas de redes sociais, expondo seus filhos de formas diversas, ainda que não literalmente sexualizada, mas com o desiderato de gerar likes. Somam-se a isso falhas graves no padrão educacional brasileiro, em que não há espaço para o estudo filosófico, que justamente é a válvula de escape para o debate sobre a ética, sobre a moral, sobre o viver o coletivo. Assim, seguimos criando uma espécie própria de ética individual, sem diálogo e negociação, vivendo de forma egoísta.
É nesse ambiente que surge a proposta de gozo do mercado, em que o sujeito vende sua intimidade, sua dignidade, e em troca ganha bens de consumo instagramáveis (vídeo ou pastagem atraente, colocado na plataforma Instagram), isto é, que são colocados em redes sociais como uma espécie de troféu. Uma medalha de usufruição efêmera pela venda da exposição da vida pessoal.
Monetização na ‘sociedade do espetáculo
O que Felca denunciou não era novidade. Há anos convivemos com redes sociais das mais variadas, nas quais são postados vídeos e imagens, em que as pessoas expõem detalhes de suas vidas e, muitas vezes, dados íntimos, inclusive, com exposição sexualizada.
São milhares de vídeos que mostram crianças e adolescentes, muitos dos quais também se tornam youtubers e influencers e passam a vender produtos ao público infantil, o qual, sem ferramentas mentais suficientes para selecionar que se trata de publicidade, veem na mensagem uma espécie de comando de consumo. Por lógico, existe toda uma logística na construção de vídeos para as redes sociais e o maior número de visualizações está a depender de uma equipe adulta mínima. E nesse caso, de influencers mirins, são os próprios pais que são a equipe de produção.
Muitas vezes, famílias veem nos filhos menores um potencial de carisma que coloca esses sujeitos frente a uma exposição de milhões de visualizações, sem limites de fronteiras físicas. Isso pode render likes para esses filhos, novos engajamentos e seguidores, com uma assistência determinada. Esses vídeos podem ser “monetizados”, isto é, a plataforma que transmite o vídeo gera uma remuneração ao seu “artista mirim”.
As redes sociais permitem-nos levar ao extremo a chamada “sociedade do espetáculo”, obra criada por Guy Debord, em 1967, em que o autor fazia uma crítica contundente à valorização da mercadoria e da aparência no contexto das relações sociais, um mundo da objetificação e artificialização das experiências. Pior fica quando passamos a ofertar postagens, vídeos e imagens em que somos a mercadoria.
Novos ricos
No Brasil, existem dois milhões de influenciadores, criadores de conteúdo, conforme anunciado pela empresa Influency.me [1]. Em outras épocas, artistas de televisão e cinema eram disputados por agências de publicidade para enaltecer empresas, marcas, produtos etc. Hoje, esse papel foi absorvido em grande parte por esses influenciadores, ao menos aqueles de largo sucesso, com milhões de seguidores. Há uma nova classe de novos ricos, mas o sol não nasce a todos.
Obviamente, há os que têm êxito e se mantêm no mercado, embora esses sejam poucos, mas, por outro lado, existe a promessa, a esperança de pessoas que, até então, portadoras de vida comum, com formação formal limitada, possam se tornar milionárias digitais, porque conseguem captar atenção dos milhares de usuários de telas. Coisas simples, como cozinhar uma refeição trivial, com pequena dose de humor improvisado, sem técnicas teatrais, pode redundar em milhares de acesso a um vídeo. Um adolescente ou criança a ver esse mundo “possível”, sem que alguém a lhe explicar a regra do jogo, se encantará, e vai querer participar disto. Afinal, isso rende monetização. Tal ambiente pode fazer com que o menor acabe até gerando situações de risco de acidentes graves, em face do desejo de viralizar na rede.
Limites e legislação
Embora existam certos limites e regras que as plataformas dizem a adotar, isso não as impede de divulgar vídeos com menores. Poderia se questionar se tais ambientes devem apresentar menores. Será que, diante do mau uso contínuo das redes, chegaremos ao momento de ter que limitarmos elas a menores? No final de 2024, a Austrália entendeu por proibir o acesso de menores de 16 anos às redes sociais.
As big techs que não cumprirem com a lei podem ser punidas em até 50 milhões de dólares australianos, algo que chega quase a R$ 200 milhões [2]. No Brasil, com vistas a melhorar a qualidade e de educação, foi sancionada, em 13 de janeiro de 2025, a Lei nº 15.100/25, a qual proíbe o uso de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais em escolas públicas e privadas de todo o país, com vistas a proteger a saúde mental, física e psíquica das crianças e adolescentes. Ou seja, já existem medidas evitativas da exposição em telas e ainda assim não são suficientes.
Além disso, os algoritmos e sistemas de inteligência artificial das redes sociais contribuem para o fato de que, quanto mais são assistidos vídeos de crianças e adolescente, mais é entendido que o usuário se interessa por esse tema, de forma que, ao entrar nesses ambientes, ele acaba recebendo preferencialmente vídeos com esse conteúdo. De certa forma, o desejo humano na rede social é colonizado, porque algo ou alguém entende o que é melhor a ele. Assim, deveria existir algoritmo barrando esse tipo de vídeo em que menores são expostos, e não um algoritmo que incentivasse o aumento do número de visualização.
O que Felca conseguiu gerar é justamente o que falta no mundo atual: o debate, a crítica. Fazia tempo que o copo havia transbordado, mas faltava o grito na multidão que estava cega e surda, que só tinha olhos e ouvidos a si, para dizer que as coisas não estavam nada bem.
ECA Digital
O fato de restar preso o youtuber Hytalo, em termos gerais, talvez não gere grande impactos. Uma coisa é a perseguição criminal individual do responsável pela divulgação, outra é observar o que temos que mudar como sociedade. Como ele, existem centenas que estão soltos. O aviso terá que servir como fator de cancelamento desse tipo de influencer, de não assistência a esse tipo de postagem, de análise prévia dos pais de onde seus filhos transitam pela internet. Será que pais deixariam um menor de idade caminhar sozinho à noite num grande centro urbano? Por que então deixam esses menores trafegarem sozinhos pelas redes sociais, onde há tipos de todo nível, inclusive, pedófilos, golpistas, etc.? Os filhos, de forma geral, acessam a internet sem filtros, e sem a presença de adultos ao lado que possam explicar o conteúdo real das informações.
Com o clamor público gerado com a denúncia de sexualização de menores de idade na internet, após a postagem do Felca, o parlamento nacional resolveu dar andamento a projeto de lei que tratava da exposição de crianças e adolescentes nas redes socais, com vistas a dar uma resposta a sociedade. Havia o Projeto de lei do Senado pode proteger crianças e adolescentes de abusos no ambiente digital, aprovado pelos senadores em novembro de 2024, tratando-se do PL 2.628/22. Referida norma prevê regras para as plataformas e facilita o fornecimento de informações e o monitoramento pelos pais e responsáveis. O texto, agora, aguarda análise na Câmara dos Deputados.
O referido projeto ficou sendo chamado também de “ECA Digital”, em alusão ao Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo, portanto, uma versão do ECA original, mas para o ambiente digital. Entre as novidades, reside a criação de uma Autoridade Nacional de Fiscalização, inspirada na Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) que fiscaliza a Lei Geral de Proteção de Dados, podendo aplicar multas de até 10% do faturamento ou de 50 milhões de reais por infração cometida.
De acordo com o PL referido, as lojas de apps e sistemas operacionais terão de aferir a idade do usuário e oferecer ferramentas de supervisão parental, sendo que adolescentes só poderão baixar determinados aplicativos com consentimento informado dos responsáveis. No que tange a redes sociais, contas de menores de até 16 anos deverão ser vinculadas a um responsável, e as plataformas terão de informar claramente quando o serviço não for apropriado para crianças. Será proibida a publicidade comportamental direcionada a menores, bem como o uso de técnicas de perfilamento emocional, jogos on line deverão divulgar as chances reais de ganho em caixas de recompensa, ficando proibida a conversão de itens virtuais em dinheiro ou em vantagens desproporcionais pagas (“pay to win“) [3].
Por sua vez, as big techs, gigantes do setor digital, não revelam guardar empatia ao PL referido, visto que isso com certeza redundará em limitações a interesses comerciais de divulgação de vídeos, onde também são anunciados produtos, serviços, etc. Aliás, se as big techs tivessem real interesse na interrupção de transmissão desses vídeos, não seria necessária uma a lhes cobrar o comportamento.
Também merece registro o fato de que menores assistindo a vídeos em que há exposição de outros menores, com adultização e sexualização desses personagens, pode gerar a ideia de um comportamento aceitável, a ser copiando, como se fosse algo bom, o que destrói tanto a infância e adolescência do ator mirim quanto a do consumidor dessa mensagem. O mercado já tem uma tendência natural de adultizar menores, incentivando-os a adquirir produtos e serviços do mundo adulto, com destaque ao setor de cosméticos e vestuário. O cenário exposto pela Felca é ainda pior, quando esses menores são mostrados com vistas a se tornarem alguma espécie de produto inspirador de desejo sexual.
Temos um compromisso com as gerações mais novas, tornando-as melhores do que já fomos. É crucial defendê-las contra todos os tipos de agressões ilícitas e que podem comprometer a saúde física e mental, gerando adultos emocionalmente comprometidos. Que bom que o grito do Felca na multidão cega despertou a sociedade para o problema grave que deve ser tratado.
FONTE: CONJUR