CONJUR: Adultização, censura, controle das redes e a proteção integral de crianças e adolescente
segunda-feira, 25 de agosto de 2025, 18h55
A contemporaneidade digital transformou radicalmente a experiência da infância e adolescência. Crianças e adolescentes encontram-se imersos em ambientes virtuais que frequentemente os expõem, de forma precoce e descontrolada, a conteúdos e interações próprias do mundo adulto. Este fenômeno, conceituado como adultização, representa uma das principais ameaças ao desenvolvimento saudável do público infanto-juvenil na era digital.
Paralelamente, o ordenamento jurídico brasileiro enfrenta um dilema fundamental: como conciliar a proteção constitucional da liberdade de expressão com a necessidade urgente de regulamentação das redes sociais e proteção integral de crianças e adolescentes? Essa tensão entre censura, regulação legítima e garantias fundamentais tem se tornado pauta central em tribunais, academias e na formulação de políticas públicas.
Quais os desafios ético-jurídicos, examinando os marcos normativos existentes, as lacunas regulatórias e as possibilidades de construção de um sistema de proteção que seja simultaneamente eficaz e respeitoso aos princípios democráticos.
Adultização na era digital e seus fundamentos jurídicos
O fenômeno da adultização precoce consiste na imposição de características, comportamentos e responsabilidades típicas do mundo adulto a crianças e adolescentes, processo que ocorre através de múltiplos vetores: mídia tradicional, plataformas digitais, marketing direcionado e influenciadores digitais. David Buckingham (2007) identifica um processo de “erosão simbólica da infância” provocado pela homogeneização cultural promovida pelas mídias digitais, onde a internet potencializa essa tendência ao criar um mercado de consumo infantil adultizado.
No contexto brasileiro, este processo manifesta-se de forma particularmente preocupante através de campanhas publicitárias, conteúdos de influenciadores digitais e produtos audiovisuais que normalizam a exposição sexualizada de crianças e adolescentes. Plataformas como TikTok, Instagram e YouTube tornaram-se ambientes onde a adultização se intensifica, comprometendo etapas fundamentais da formação psicológica, social e moral dos menores e aumentando significativamente sua vulnerabilidade a práticas abusivas.
Essa realidade confronta diretamente o sistema jurídico brasileiro que, através do artigo 227 da Constituição, estabelece o princípio da proteção integral e prioritária de crianças e adolescentes. Este dispositivo, inspirado na doutrina da proteção integral consagrada na Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), determina que família, sociedade e Estado devem assegurar com absoluta prioridade os direitos fundamentais de crianças e adolescentes. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990) regulamenta este mandamento constitucional, criando um sistema abrangente de proteção com mecanismos de prevenção, atendimento e responsabilização para casos de violação de direitos.
A adultização precoce contradiz frontalmente esses princípios constitucionais, criando uma tensão jurídica que demanda respostas normativas capazes de articular tanto a proteção integral quanto o respeito aos direitos fundamentais em conflito.
Liberdade de expressão versus regulação legítima no ambiente digital
A liberdade de expressão, consagrada nos artigos 5º, IV e IX, e 220 da Constituição, constitui um dos pilares do Estado democrático de direito. Contudo, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente afirmado que nenhum direito fundamental possui caráter absoluto, devendo ser exercido em harmonia com outros direitos igualmente fundamentais. A proteção da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF) e os direitos de crianças e adolescentes (artigo 227, CF) estabelecem limites constitucionalmente legítimos ao exercício da liberdade de expressão, particularmente quando esta é instrumentalizada para práticas abusivas ou exploratórias.
Neste contexto complexo, a distinção entre censura ilegítima e regulação legítima emerge como um dos principais desafios hermenêuticos contemporâneos. A censura caracteriza-se pela supressão arbitrária e prévia de conteúdos baseada em critérios político-ideológicos, enquanto a regulação legítima fundamenta-se na proteção proporcional e razoável de direitos fundamentais, respeitando os procedimentos democráticos e o controle judicial.
O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) representa um importante avanço nesta direção, estabelecendo princípios de neutralidade de rede, privacidade e responsabilização que buscam equilibrar direitos e liberdades no ambiente digital. A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) complementou este quadro normativo, introduzindo parâmetros mais claros sobre o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, estabelecendo requisitos rigorosos de consentimento e proteção especial para este grupo vulnerável.
Neste cenário regulatório em construção, destaca-se o Projeto de Lei nº 2.628/2022, aprovado pela Câmara dos Deputados em 20 de agosto de 2025, que estabelece normas específicas de transparência, responsabilidade e liberdade na internet, priorizando a proteção de crianças e adolescentes. Busca-se implementar obrigações expressas para provedores e plataformas digitais quanto à moderação de conteúdos, combate à desinformação e criação de mecanismos de proteção especial para menores.
A aprovação representa um marco na tentativa de conciliação entre proteção infanto-juvenil e preservação das liberdades democráticas, estabelecendo critérios objetivos para a remoção de conteúdos nocivos sem configurar censura prévia. Contudo, sua tramitação suscita debates fundamentais sobre os limites da regulação estatal frente à autonomia das empresas de tecnologia, evidenciando a necessidade de salvaguardas institucionais que impeçam sua instrumentalização como mecanismo de controle político. O controle social das políticas de moderação de conteúdo e a transparência nos algoritmos de recomendação são demandas que emergem deste debate público, consolidando-se como direitos fundamentais na era digital.
Violência sexual digital e necessidade de responsabilização
A internet consolidou-se como ambiente fértil para práticas de violência sexual contra crianças e adolescentes. O child grooming, processo sistemático de aliciamento digital em que adultos conquistam gradualmente a confiança de menores para fins de exploração sexual, tem apresentado crescimento exponencial, conforme documentado em relatórios da Europol (2023) e da Interpol (2022). Este fenômeno caracteriza-se por técnicas psicológicas sofisticadas de manipulação, frequentemente envolvendo múltiplas plataformas e estratégias de isolamento da vítima.
O ordenamento jurídico brasileiro, através do ECA e da Lei nº 11.829/2008, tipifica e estabelece sanções para condutas relacionadas à pornografia infantil, produção e distribuição de material de abuso sexual infantil. Contudo, o caráter transnacional das redes digitais impõe desafios significativos à investigação e punição destes crimes, exigindo instrumentos de cooperação internacional mais eficazes e procedimentos jurídicos inovadores.
A responsabilização das plataformas digitais constitui tema central no combate à exploração sexual online. As big techs devem implementar sistemas eficazes de detecção automática de conteúdos abusivos, mecanismos simplificados de denúncia, remoção expedita de materiais ilegais e cooperação com autoridades investigativas. A experiência internacional, particularmente a legislação europeia, oferece modelos interessantes de responsabilização proporcional que podem inspirar aprimoramentos na regulação brasileira.
Para além do enfoque exclusivamente repressivo, torna-se imprescindível o investimento em educação digital crítica. Crianças e adolescentes devem desenvolver competências para reconhecer situações de risco online, compreender os mecanismos de manipulação digital e estabelecer limites saudáveis no uso da tecnologia. Famílias e educadores precisam assumir papel ativo na mediação do uso da internet, desenvolvendo estratégias pedagógicas que promovam o uso seguro e consciente das tecnologias digitais.
Diretrizes para regulação democrática e eficaz
A construção de um marco regulatório eficaz deve fundamentar-se nos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, impedindo que medidas de proteção sejam desvirtuadas para justificar censuras políticas ou ideológicas. Ao mesmo tempo, é imperativo rejeitar tentativas de instrumentalizar a liberdade de expressão como escudo para práticas abusivas contra crianças e adolescentes.
Esta regulação deve estruturar-se em três pilares essenciais: primeiro, a efetividade da proteção através da implementação de mecanismos concretos e mensuráveis; segundo, a transparência e controle democrático mediante procedimentos claros de moderação de conteúdos com possibilidade de supervisão social e judicial; terceiro, o equilíbrio entre repressão e educação, harmonizando medidas sancionatórias com iniciativas preventivas e educativas.
A efetivação destes princípios requer a criação de órgãos especializados em regulação digital, desenvolvimento de protocolos de cooperação internacional, investimento em capacitação de operadores do direito e estabelecimento de canais permanentes de diálogo com a sociedade civil.
Conclusão
A proteção de crianças e adolescentes no espaço digital constitui um dos principais desafios jurídicos e éticos da contemporaneidade. O fenômeno da adultização precoce, associado aos riscos de exploração sexual online e práticas abusivas digitais, demanda respostas institucionais que articulem regulação normativa, políticas públicas preventivas e educação digital crítica.
A experiência tem demonstrado que a autorregulação das plataformas digitais é insuficiente. Nesse sentido, a aprovação do Projeto de Lei nº 2.628/2022 representa um avanço na superação da omissão regulatória, estabelecendo parâmetros legais para coibir a proliferação de conteúdos nocivos e práticas de aliciamento. Contudo, sua efetividade dependerá da regulamentação, da fiscalização rigorosa e da participação social contínua, a fim de evitar tanto a captura política quanto a ineficiência normativa.
A liberdade de expressão, embora direito fundamental, não pode ser exercida de forma absoluta quando colide com a proteção integral de crianças e adolescentes. O princípio da prevalência do superior interesse da criança, consagrado no artigo 227 da Constituição, deve orientar qualquer solução regulatória, estabelecendo limites claros e proporcionais ao funcionamento das plataformas digitais.
O cumprimento do mandamento constitucional da prioridade absoluta da infância e juventude exige uma mudança paradigmática na regulação digital. A sociedade brasileira não pode aceitar que a proteção de crianças e adolescentes seja sacrificada em nome de uma pretensa liberdade absoluta das redes sociais. Somente através da regulação adequada e da fiscalização rigorosa será possível garantir que o ambiente digital contribua para o desenvolvimento saudável das futuras gerações, em conformidade com os princípios fundamentais do Estado democrático de direito.
FONTE: CONJUR