Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

TJMT: Reflexão e responsabilidade: a potência dos Círculos de Paz no Case Feminino

sexta-feira, 22 de agosto de 2025, 13h20

Despertar valores. Enfrentar as consequências de cada escolha. Repensar os rumos. É por meio de perguntas potentes, realizadas no tom e na medida certa, em um ambiente seguro criado pelos Círculos de Construção de Paz, que o Projeto Restaurar, vem abrindo espaço para a reflexão e o ressignificar de trajetórias. Desenvolvido pela Segunda Vara Especializada da Infância e Juventude de Cuiabá, em parceria com o Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania da Infância e Juventude (Cejusc), a iniciativa abre caminhos para a reintegração das adolescentes internadas no Centro de Atendimento Socioeducativo Feminino (CASE Feminino), da capital.

 

Alicerçado nos pilares da Justiça Restaurativa, o Projeto Restaurar é realizado pelos facilitadores Juliana Kido, gestora do Cejusc da Infância e Juventude, e Fernando Gavioli, agente da infância, que durante seis meses conduziram Círculos de Paz no CASE Feminino. Nesses encontros, as adolescentes tiveram a oportunidade de refletir de maneira qualificada sobre suas atitudes dentro e, principalmente, fora do sistema socioeducativo, desenvolvendo habilidades socioemocionais, fortalecendo vínculos, ressignificando histórias e criando oportunidades para um futuro longe da reincidência.

 

O CASE Feminino de Cuiabá abriga hoje 20 adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, entre definitivas e provisórias. As medidas, previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), podem se estender por até três anos. A internação, como medida socioeducativa, é aplicada a adolescentes com idade entre 12 e 18 anos, que tenham cometido ato infracional praticado mediante grave ameaça ou violência à pessoa, reincidência em infrações graves ou descumprimento reiterado de medidas anteriormente impostas. O ECA também prevê que, em casos específicos, as medidas socioeducativas podem ser cumpridas por jovens de até 21 anos, desde que o ato infracional tenha sido cometido antes de completarem 18 anos.

 

 

Para a juíza titular da Segunda Vara Especializada da Infância e Juventude de Cuiabá e coordenadora do Eixo Socioeducativo do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e Socioeducativo (GMF/MT), do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, Leilamar Rodrigues, o círculo de construção de paz é uma oportunidade singular para que as adolescentes se manifestem e escutem umas às outras sem julgamentos, conhecendo as histórias de vida de cada participante e criando laços de conexão e empatia.

 

Perguntada sobre os resultados da implementação dos círculos na unidade, a magistrada destacou o aspecto comportamental como a principal mudança percebida na convivência entre as adolescentes.

 

“Observamos uma transformação significativa no comportamento das adolescentes. Elas desenvolveram maior capacidade de expressão emocional e de diálogo construtivo, passando a compartilhar suas experiências de maneira mais aberta e respeitosa. Foi possível perceber mudanças práticas em suas atitudes: demonstraram habilidades de mediação de conflitos e passaram a assumir, de forma consciente, a responsabilidade coletiva pela manutenção de um ambiente colaborativo e harmonioso”, refletiu doutora Leilamar.

 

E completou: “A experiência dos círculos favorece um espaço de reflexão profunda sobre os atos cometidos e seus impactos, promovendo a conscientização e o fortalecimento da responsabilidade pessoal. Além disso, permitem a abordagem de temas sensíveis e urgentes no contexto da unidade, como bullying, depressão, empatia, entre outros, respondendo a necessidades pontuais e fortalecendo o ambiente de convivência. É nesse movimento que as adolescentes encontram não apenas ferramentas para lidar com os conflitos, mas também novas formas de se reconhecerem e de reconstruírem seus vínculos”.

 

Na socioeducação, a aplicação da Justiça Restaurativa está entre os princípios fundamentais que regem as medidas socioeducativas, conforme o artigo 35 da Lei nº 12.594/2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) e regulamenta a execução das medidas destinadas ao adolescente que tenha praticado ato infracional. Alinhadas aos objetivos legais das medidas socioeducativas e ao seu caráter pedagógico, as práticas restaurativas contribuem para a responsabilização, reparação de danos e reflexão crítica dos adolescentes. Inserida como ferramenta pedagógica, a Justiça Restaurativa se diferencia da lógica punitiva tradicional, quando decide priorizar a reparação e o diálogo, ao invés da mera imposição de sanções.  

 

Para lidar com as consequências dos atos é preciso ampliar as lentes e refletir sobre a corresponsabilidade não apenas do adolescente, mas também da família, da comunidade e da sociedade em si. É na corresponsabilidade, muitas vezes negligenciada, que é possível promover a restauração de vínculos e a cultura da não violência, evitando que o socioeducativo se limite a uma simples resposta punitiva.    

 

 

A vivência circular. Dentro de um Círculo de Construção de Paz, são as perguntas que conduzem o diálogo e dizem qual caminho será percorrido. Pensadas para gerar conexão, empatia e pertencimento, as perguntas obedecem a uma sequência elaborada intencionalmente pelos facilitadores, com o objetivo de ir vencendo as barreiras e abrindo pequenas clareiras no caminho.

 

À medida que o círculo evolui, evoluem também as perguntas, que se aproximam da verdadeira intenção preparada para aquele círculo, naquele dia, e com aquele grupo de pessoas. Seguras e confiantes para falar, é chegada a hora de refletir.       

 

Por motivos de segurança, os nomes mencionados nesta matéria são fictícios, a fim de preservar a integridade das adolescentes.

 

A importância dos vínculos afetivos. Após oito tentativas de suicídio, se formar médica veterinária e ir morar com a avó em Portugal são os maiores sonhos da Joana, 18 anos, natural do interior do Estado. Internada há dez meses por ato infracional análogo ao crime de homicídio, ela aguarda, com ansiedade, o dia 15 de setembro, quando seu relatório socioeducativo será enviado para avaliação da juíza. O documento acompanha o desenvolvimento dos adolescentes, reunindo informações sobre histórico, comportamento e evolução, e serve de subsídio para as decisões judiciais relativas ao processo.

 

Perguntada sobre o que mudaria em sua vida, ela respondeu: “Meu passado, mas sei que não tem como mudar o passado. Foi ele que me trouxe até aqui, foram as más amizades, as más influências, e acho que se pudesse mudar algo, não queria ter conhecido aquelas pessoas, me arrependo demais de tudo isso. Estou sofrendo muito longe da minha família. Já tentei suicídio oito vezes desde que cheguei aqui, na terceira e quinta vez quase não conseguiram me salvar. Lá fora já tinha tentado suicídio, mas lá fora eu conseguia diminuir minha dor com drogas, com bebidas, e como aqui dentro não tem nada disso, ficou pesado enfrentar sozinha, sabe. Meu maior sonho hoje é me formar médica veterinária e ir morar com a minha avó em Portugal, porque foi ela quem me criou”.

 

Falar sobre o que dói, e principalmente, refletir sobre aquilo que pode ser diferente. “Quando conheci os círculos, descobri que confiança é um valor muito importante para mim. Confiar no outro, mas principalmente, confiar em mim. Eu não acreditava em mim, nas pessoas e nem na minha família, com o tempo e com os círculos, passei a ver que para a gente ter uma vivência melhor com as pessoas, a gente precisa confiar, e nisso, o círculo me ajudou muito, me ajudou a parar de tentar suicídio”, concluiu.  

 

O orgulho que faz mover. Fátima, 15 anos, morava com a família no interior de Mato Grosso. Há dez meses no CASE, conta que, assim que receber a liberação judicial, pretende retomar os estudos, concluir o ensino médio, ingressar na faculdade, e realizar o desejo de se tornar uma grande escritora.

 

O maior sonho de Fátima é provar para sua mãe o quanto mudou. “Quando cheguei aqui, eu era uma pessoa diferente. Agora, minha vontade é mostrar quem eu sou e fazer o meu melhor lá fora. Quero mostrar para minha mãe tudo o que aprendi, para que ela mude de vida e aprenda a ser paciente, a ver o lado do outro”.

 

Ela reconhece que nem sempre consegue expressar os valores que carrega dentro de si, mas afirma que a participação nos Círculos de Paz foi fundamental para refletir sobre eles: “Os círculos me ajudaram a reconhecer valores que tenho dentro de mim, mas que não sei expressar. Estou aprendendo a ter mais respeito, a olhar com outros olhos e a aprender com as histórias das outras meninas. Porque quando a gente fala das nossas histórias, nós conseguimos passar algo de bom para a outra e também aprende com as histórias delas. É como se a gente se visse um pouquinho na história de cada uma, porque aqui, dentro do círculo, elas falam coisas que não falam lá dentro da cela. Isso faz a gente ter mais compaixão e menos julgamento pela história do outro”, explicou.  

 

 

Dificuldades compartilhadas. Natural do interior do Estado, Guilhermina, 17 anos, cumpre medida socioeducativa há um ano e três meses. “Lá trás, antes dos círculos, eu tinha uns planos, e agora tenho outros planos, e são os planos de hoje que eu quero conquistar. Os círculos me ajudaram a pensar mais na vida para frente. Ouvir as meninas falarem dos planos futuros também me fez pensar no meu futuro. Daqui cinco anos quero estar formada na escola, e fazendo faculdade de agronomia. Gosto muito de mato, de rodeio, de montaria. Toda vez que ia no rodeio e via a rainha do rodeio, eu ficava me imaginando no lugar delas. Eu acho muito lindo”.

 

Vinda de uma família muito humilde, Guilhermina compartilhou que o momento mais doloroso já vivido por ela e sua família foi o desaparecimento do irmão mais velho. “Foram dias muito difíceis para a minha família. Falar sobre o que aconteceu com meu irmão ainda me abala muito. Ele foi mantido em cativeiro e, por muitos dias, ficamos sem notícias dele. Buscamos pela ajuda dos amigos, mas poucos nos ajudaram. Não posso falar muito sobre isso, mas foi o maior medo que já senti na minha vida: o de perder o meu irmão. Nunca falei isso para ninguém, nem mesmo com a minha mãe. Hoje ele está preso. Peço muito a Deus que ele mude, assim como eu mudei. Mas não sei o que acontece com ele; parece que não aprende. Isso me dá muito medo”, relatou.  

 

 

FONTE: TJMT


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