Violência contra a mulher: flexibilização de armas de fogo agrava vulnerabilidade
por ROCHANE CARVALHO
quarta-feira, 13 de julho de 2022, 13h39
Em meio à ataques aos direitos da mulher e casos de violência, debate sobre armamento da população assusta ONGs e especialistas no tema.

O Brasil começou a semana com mais um caso estarrecedor de violência contra mulheres: um médico anestesista preso em flagrante pelo estupro de uma mulher em trabalho de parto, sedada com medicamentos supostamente acima da dose indicada. Esse e outros casos recentes envolvendo também o cerceamento de direitos se somam a uma ameaça real que tramita em Brasília: o PL nº 3.723/2019, prestes a ser votado no Senado, que visa a alterar o Estatuto do Desarmamento para flexibilizar ainda mais o acesso a armas de fogo por colecionadores, atiradores e caçadores – os chamados CACs.
E o que as mulheres tem a ver com isso? É o que o Humanista foi tentar entender. Para a antropóloga Debora Diniz, professora e pesquisadora da UnB (Universidade de Brasília), “a circulação de armas no país” tem um impacto direto na vida das mulheres. “Nós temos vivido forças políticas que atacam as mulheres, atacam sua vida. A circulação de armas tem essa força”, argumenta a antropóloga, em entrevista à Rádio Metropole, da Bahia, nesta terça-feira (12). Para ela, a quantidade de feminicídios com armas de fogo nos últimos meses é atribuída à facilidade no acesso.
De acordo com o relatório O papel da arma de fogo na violência contra a mulher, publicado pelo Instituto Sou da Paz, em 2021, a arma de fogo é o principal instrumento usado para tirar a vida de mulheres no país. A constatação é fruto da análise de uma série de dados de 2012 a 2019. A partir do resultado, o instituto sugere o controle de armas como forma de conter os feminicídos: “Fortalecer a política de controle responsável sobre as armas de fogo no país, considerando os riscos não apenas do porte de armas em locais públicos, mas também os riscos da posse de armas dentro de casa”.
Flexibilização para colecionadores, atiradores e caçadores
O PL nº 3.723/2019 estava prestes a ser votado na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado Federal no início de março quando, por iniciativa da senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), teve um pedido de vistas aprovado. A movimentações mais recentes na página de acompanhamento da tramitação registram apenas a inserção de emendas apresentadas por senadores ao texto original, já aprovado na Câmara dos Deputados.
Agora, a votação do projeto relatado pelo senador Marcos do Val (Pode-ES) pode ocorrer em breve, atendendo a pressões como o ato realizado pela Proarmas (Associação Nacional Movimento Pró Armas) no último domingo (10), em Brasília. Sob o tema “Não caminhamos por armas, caminhamos por liberdade”, a manifestação ocorreu justamente no Dia Mundial pelo Desarmamento. Segundo a organização, o objetivo é a “defesa do direito do cidadão de ter armas e da liberdade de escolha”.

Ato organizado pela Associação Nacional Movimento Pró Armas em Brasília. Foto: Metrópoles.
O texto do projeto de lei prevê o aumento de cinco para 10 anos da validade do documento de porte de arma de fogo curta para atiradores esportivos. Além de reduzir de cinco para um ano o período que o atirador esportivo deve aguardar, a partir da primeira emissão do Certificado de Registro, para que seja autorizado a portar arma de fogo. De maneira geral, o projeto traz flexibilizações polêmicas em relação à lei armamentista brasileira.
A promessa de facilitar o acesso a armas de fogo para profissionais não vinculados à segurança pública no Brasil foi um dos pilares da campanha eleitoral em 2018, vencida pelo atual presidente da república, Jair Bolsonaro (PL). Seu governo, a partir de 2019, assinou uma série de decretos que facilitaram a aquisição de armas. Só entre janeiro e agosto daquele ano, o primeiro de Bolsonaro, a presidência publicou oito decretos e encaminhou o projeto de lei que tramita agora.
Levantamento feito pela BBC News aponta que em 2021 houve um crescimento de 12% no total de revólveres e pistolas importados, totalizando mais de 119 mil equipamentos, contra 105.912 em 2020. Além disso, houve um aumento de 574% na importação de fuzis, carabinas, metralhadoras e submetralhadoras.
Já o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública revela que o número de armas de fogo no Brasil dobrou nos últimos três anos. Outro dado trazido pela publicação mostra que houve aumento do registro de caçadores no país. Porém, a fiscalização não tem acompanhado a acelerada de novos caçadores registrados. “Ainda que o Exército tenha informado um aumento no número de visitas aos seus tutelados no ano de 2020 em comparação ao ano anterior, o número parece insuficiente para coibir ilegalidades e prevenir o mal uso do privilégio dado a essas categorias”, indica a publicação.

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021
O Senado Federal promove uma consulta pública em seu site para saber a opinião da população sobre a flexibilização para colecionadores, atiradores e caçadores . Para votar é preciso fazer um cadastro e gerar um login e senha.
Mais armas, mais feminicídos
Atualmente, o Brasil ocupa o quinto lugar no ranking de países que mais matam mulheres no mundo. A informação é do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). De acordo com o órgão, o Brasil só perde para El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia em número de casos de assassinato de mulheres. Comparando com países desenvolvidos, no território brasileiro se mata 48 vezes mais mulheres que no Reino Unido, 24 vezes mais que na Dinamarca e 16 vezes mais que no Japão ou na Escócia. E apesar do péssimo índice, o número de armas no país só tem aumentado.
Especialistas já demonstram preocupação acerca dos dados mais recentes. De acordo com a socióloga e professora do Programa de Pós-graduação em Segurança Cidadã da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Letícia Schabbach, as mulheres tendem a ficar mais propícias a serem mortas em situações de violência doméstica ou em outras circunstâncias.
“A arma de fogo, que está presente em cerca de 70% dos homicídios, não evita a violência, ao contrário, é um instrumento que potencializa a letalidade dos conflitos”Letícia Schabbach
Além disso, a coordenadora da área de violência da ONG Themis, Renata Jardim, pondera que a presença de uma arma dentro de casa também aumenta o medo dessas mulheres de denunciar ou buscar ajuda. “Elas se sentem amedrontadas, isso gera uma série de ameaças e faz com que se amplie as subnotificações que mantém as mulheres em situação de violência dentro desse ciclo.”
A Themis é uma organização da sociedade civil, sediada em Porto Alegre (RS), que tem como objetivo construir com as mulheres caminhos de acesso à justiça e de fortalecimento da cidadania que enfrentem as desigualdades raciais, socioeconômicas e culturais. Uma de suas principais iniciativas é capacitar lideranças comunitárias sobre direito das mulheres, as chamadas promotoras legais. Atualmente, conta com 30 promotoras atuando diretamente nas comunidades. Na Região Metropolitana, são pelo menos 50 mulheres. Segundo a coordenadora, no último curso feito pela organização, 100 mulheres de todo o Rio Grande do Sul receberam treinamento.
Para Renata Jardim, o discurso de que as mulheres poderiam se defender de agressões e tentativas de feminicídio é frágil. “A gente tem que ter políticas de segurança e de proteção para as mulheres e não simplesmente colocar como responsabilidade delas essa proteção. Isso é muito cruel”, defende. Este é o mesmo ponto de vista da professora Letícia Schabbach, que diz que o uso das armas de fogo não evita a violência, mas torna mais provável o desfecho mortal dos conflitos, vitimando tanto mulheres quanto homens. “Estudos científicos demonstram a falácia da justificativa em torno da resistência e da autodefesa, expressada pelos apoiadores das armas de fogo em seus discursos.”
Fonte: ufrgs