Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Cyberbullying: Dever de cuidado das escolas e novas concepções da responsabilidade civil

quarta-feira, 26 de novembro de 2025, 16h54

A presença cada vez mais intensa das tecnologias no cotidiano de crianças e adolescentes tem gerado inúmeros benefícios, mas também trazido desafios complexos - entre eles, o cyberbullying que se destaca como uma forma insidiosa de violência. Diante desse fenômeno, emerge uma preocupação sobre o papel das instituições de ensino na formação ética, emocional e social das novas gerações.

 

A expressão cyberbullying é a junção de dois elementos linguísticos, cyber e bullying. Bullying denota um comportamento agressivo, humilhante e ofensivo exercido por alguém. Quando tal violência é praticada em ambiente virtual (cyber) tem-se caracterizado o cyberbullying. Nas palavras de Adriano Marteleto Godinho e Marcela Maia de Andrade Drumond, "o cyberbullying é, pois, a virtualização do bullying, ou seja, o agente ofensor se utiliza de ferramentas virtuais para perpetrar ameaças ou ofensas contra terceiros".1

 

Diante da repercussão desses fenômenos na sociedade brasileira, o legislador editou norma voltada para seu enfrentamento em todos os ambientes sociais, com foco especial no ambiente escolar: a lei 13.185, de 6 de novembro de 2015, que instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying).

 

Essa lei define a intimidação sistemática (bullying) como qualquer ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo, sem motivação aparente, realizado por um indivíduo ou grupo com o objetivo de intimidar ou agredir outra pessoa, causando sofrimento e reforçando relações de poder desiguais; descreve formas variadas de bullying, que vão desde ataques físicos, insultos e exclusão social, até expressões preconceituosas e pilhérias. Inclui também o cyberbullying, caracterizado pelo uso de tecnologias digitais para expor, humilhar ou constranger psicossocialmente as vítimas e, ainda, classifica-o em diversas categorias.2

 

A classificação legal do bullying - que se estende ao cyberbullying - adota como critério os atos praticados: verbal, moral, sexual, social, psicológico, físico, material e virtual. Cada forma envolve condutas específicas, como xingamentos, calúnias, assédio, isolamento, perseguição, agressões físicas, danos a pertences ou disseminação de conteúdo íntimo.

 

Uma das formas de enfrentamento do cyberbullying no ambiente escolar, sob a perspectiva do Direito Privado, é a responsabilização civil, tradicionalmente compreendida nos moldes clássicos da liability. Nessa concepção, uma vez reconhecida a ocorrência de ato ilícito, torna-se viável a imposição de indenização pecuniária ao ofensor ou àqueles que, por imposição legal, detinham o dever de vigilância ou cuidado.

 

Quando há decisão judicial em esfera penal ou administrativa reconhecendo a prática de cyberbullying, esse reconhecimento tende a ser considerado incontroverso no juízo cível.

 

Assim, o magistrado não discutirá novamente a existência do ilícito, mas se concentrará em fixar as consequências indenizatórias. Essa lógica de reparação, centrada na liability, prioriza a compensação da vítima, sobretudo pelos danos extrapatrimoniais, ainda que, tecnicamente, a responsabilidade civil não se limite ao dever de indenizar.

 

Contudo, é legítimo questionar se a reparação pecuniária, por si só, seria capaz de prevenir comportamentos antissociais como o cyberbullying. A indenização em dinheiro transformaria, de fato, a cultura institucional das escolas?

 

Pensemos, por exemplo, em situações nas quais adolescentes são vítimas de reiteradas agressões virtuais perpetradas por colegas da mesma escola. Mesmo após a responsabilização judicial dos agressores - ou sua eventual expulsão -, os pais da vítima já podem ter optado por transferir o filho para outra instituição, em busca de um ambiente mais seguro. Resta, então, a dúvida: a escola aprendeu com o episódio? Adotou medidas preventivas eficazes?

 

No Brasil, o CC ainda consagra, majoritariamente, a concepção clássica de responsabilidade civil (liability). No entanto, a promulgação da LGPD (lei 13.709/18) trouxe ao ordenamento novas dimensões da responsabilidade, conforme destacadas por Nelson Rosenvald: responsibility, accountability e answerability.3

 

A responsibility refere-se à responsabilidade assumida voluntariamente, de natureza ética, que independe de imposição jurídica. Trata-se de um conceito prospectivo, que projeta a responsabilidade como instrumento de autogoverno e formação da convivência. No caso das instituições de ensino, isso implica reconhecer seu papel na construção de uma cultura digital segura, inclusiva e respeitosa.

 

Essa postura ética deveria permear as diretrizes pedagógicas, a formação docente e a gestão escolar. Quando essa consciência institucional está presente, o enfrentamento ao cyberbullying torna-se parte natural do compromisso com a dignidade de crianças e adolescentes.

 

Infelizmente, a realidade mostra que muitas escolas ainda se omitem frente a situações graves, mesmo quando as práticas ocorrem em ambientes virtuais conhecidos e acessíveis à comunidade escolar. A ausência dessa responsabilidade moral compromete a eficácia das ações de prevenção e resolução de conflitos.

 

A accountability amplia o escopo da responsabilidade ao incorporar parâmetros de governança, avaliação contínua e transparência. Para além da reparação ex post, trata-se de desenvolver mecanismos internos que previnam a ocorrência de danos. No campo educacional, isso significa que escolas públicas e privadas devem ser responsabilizadas não apenas por omissões concretas, mas, também, pela ausência de políticas preventivas.

 

Essa lógica de governança impõe deveres proativos, como a adoção de códigos de ética digital, formação continuada de professores, campanhas de conscientização, criação de canais de denúncia acessíveis e procedimentos claros de apuração e resposta a incidentes.

 

Mesmo ações bem-intencionadas, como apoio psicológico às vítimas ou mediação de conflitos, perdem eficácia quando isoladas ou desarticuladas. O combate ao cyberbullying exige um sistema cooperativo, em que a escola atue de forma coordenada com famílias, poder público e sociedade civil.

 

A answerability corresponde ao dever de justificar e tornar compreensíveis as decisões institucionais, especialmente em contextos de crise ou violação de direitos. Aplicada ao ambiente escolar, significa que a comunidade - em especial as famílias e as vítimas - tem direito de obter esclarecimentos sobre os procedimentos adotados, as providências tomadas e os fundamentos de eventuais omissões.4

 

Quando uma escola ignora ou silencia diante de denúncias de cyberbullying, sob o argumento de preservar a privacidade ou evitar exposições públicas, compromete seu dever institucional de proteção. O silêncio, nesses casos, pode configurar violação ética e jurídica, sobretudo, quando solicitado por quem detém a autoridade parental.

 

Assim, ao lado da liability tradicional, o reconhecimento das dimensões da responsibility, accountability e answerability permite a construção de um modelo de responsabilidade civil mais ético, preventivo e transformador. Esse modelo não se limita a indenizar, mas busca promover mudanças estruturais que previnam novas violações e afirmem uma cultura escolar mais justa e segura - tanto no ambiente digital quanto no presencial.

 

Diante disso, impõe-se uma nova cultura institucional, fundada no diálogo, na escuta ativa, na transparência e no compromisso ético de educar para o respeito. A transformação das relações escolares passa, necessariamente, pela adoção de práticas cooperativas e solidárias, capazes de enfrentar o cyberbullying não como um problema individualizado, mas como um desafio coletivo que demanda engajamento contínuo, empatia e ação coordenada.

 

1 GODINHO, Adriano Marteleto; DRUMOND, Marcela Maia de Andrade. Cyberbullying, Deepfake e Deepnude: a vulnerabilidade das crianças e adolescentes na internet e a responsabilidade civil decorrente dos ilícitos cibernéticos. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; DENSA, Roberta. Infância, Adolescência e Tecnologia: o Estatuto da Criança e do Adolescente na sociedade da informação. Indaiatuba/SP, Foco, 2022. p. 196.

 

2 BRASIL. Lei 13.185, de 6 de novembro de 2015. Institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (bullying). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 9 nov. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 16 abr. 2025.

 

3 Sobre o tema, ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas, Coluna Migalhas de Proteção de Dados, São Paulo, 6 nov. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 16 abr. 2025; e LIMA, Taisa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Racismo institucional nas escolas e novas concepções da responsabilidade civil. Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito - Virtua Jus. Belo Horizonte, v. 9, n. 17, p. 29-38, 2º sem. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 16 abr. 2025.

 

4 A LGPD prevê o direito de explicação (answerability) apenas em caso de decisões automatizadas. Sobre o tema: LIMA, Taisa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Inteligência artificial e Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais: o direito à explicação nas decisões automatizadas. Revista Brasileira de Direito Civil -RBDCivil, Belo Horizonte, v. 26, p. 227-246, out./dez. Disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2025.

 

Fonte: Migalhas.


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