STF: Para Dino, redes devem responder conforme gravidade do conteúdo
segunda-feira, 16 de junho de 2025, 14h27
Nesta quarta-feira, 11, o plenário do STF retomou o julgamento que discute a constitucionalidade do art. 19 do marco civil da internet (lei 12.965/14), dispositivo que condiciona a responsabilidade civil de plataformas digitais à existência de ordem judicial prévia para remoção de conteúdo gerado por terceiros.
A análise ocorre no âmbito de dois recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida - RE 1.037.396 (Tema 987) e RE 1.057.258 (Tema 533).
Na sessão desta manhã, ministro Flávio Dino apresentou voto propondo responsabilização segmentada, conforme a natureza do conteúdo.
Para S. Exa., nos casos de danos causados por terceiros, deve-se aplicar o art. 21 do marco civil, que permite a remoção com base em notificação extrajudicial.
Já nos crimes contra a honra, deve prevalecer a exigência de ordem judicial prevista no art. 19.
Dino também defendeu a responsabilização das plataformas por atos próprios, como impulsionamento pago, veiculação de anúncios e criação ou tolerância de perfis inautênticos.
Sugeriu ainda que, em situações especialmente graves - como crimes contra crianças e adolescentes, terrorismo, incentivo ao suicídio e ataques ao Estado Democrático de Direito - as empresas devem adotar um dever de cuidado mais rigoroso, com monitoramento ativo do conteúdo.
Por fim, o ministro admitiu a adoção de um modelo de "autorregulação regulada", com previsão de deveres procedimentais, relatórios de transparência e garantias como contraditório e notificação prévia - tudo isso sem a criação de uma entidade estatal de controle.
Quem mais votou?
Até o momento, além de Dino, quatro ministros já apresentaram votos.
O relator, ministro Dias Toffoli, e o ministro Luiz Fux manifestaram-se pela inconstitucionalidade do art. 19 do marco civil, defendendo que as plataformas podem ser responsabilizadas independentemente de ordem judicial, sobretudo em casos graves, como perfis falsos e discursos de ódio.
O presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, propôs uma via intermediária: manutenção da exigência de ordem judicial para crimes contra a honra, mas permissão para remoção de conteúdos com base em notificação extrajudicial em outras hipóteses.
Ministro André Mendonça, por sua vez, votou pela constitucionalidade do dispositivo, destacando a importância do devido processo legal e da autorregulação das plataformas.
O julgamento foi suspenso em razão do adiantado da hora e deve ser retomado ainda nesta tarde, com o voto do ministro Cristiano Zanin.
O que está em debate?
O art. 19 do marco civil prevê que os provedores de aplicações só respondem por danos se, após ordem judicial específica, não retirarem o conteúdo apontado como ilícito.
A controvérsia está na constitucionalidade dessa exigência, especialmente diante de casos de ilicitude manifesta - como discursos de ódio, deepfakes ou ameaças à integridade física, ou moral.
O STF analisa se esse dispositivo viola a CF por restringir indevidamente o direito à reparação de danos e favorecer a impunidade em ambientes digitais. Também se avalia se determinadas situações justificam a responsabilização direta das plataformas, mesmo sem ordem judicial, como em casos de contas falsas ou impulsionamento pago de conteúdo ofensivo.
Casos concretos
Os dois processos em análise envolvem ofensas praticadas em redes sociais:
No RE 1.037.396, o Facebook foi acionado por permitir a existência de perfil falso com ofensas a terceiros. A usuária obteve indenização na instância inferior, e a empresa recorreu ao STF defendendo a constitucionalidade do art. 19.
No RE 1.057.258, discute-se a responsabilidade do Google por manter ativa uma página ofensiva no extinto Orkut. A empresa foi condenada e também levou o caso ao Supremo.
Tecnodeterminismo
Ao votar, nesta manhã, ministro Flávio Dino criticou o papel das plataformas digitais e a defesa de um modelo constitucional de liberdade baseado na responsabilidade.
Lamentou o impacto social negativo das redes sociais: "As redes sociais não aproximaram a humanidade da ciência, tampouco da filosofia, muito menos ainda da religião", afirmou.
Se dependesse apenas de sua avaliação pessoal, afirmou, faria um "juízo extremamente negativo" dessas plataformas.
Dino destacou que, apesar das críticas, não se orientaria por uma postura radical ou censória, mas por uma busca de equilíbrio e autocontenção.
Ressaltou a necessidade de o STF assumir um papel de mediação institucional entre sociedade, Estado e empresas, evitando tanto o tecnodeterminismo quanto os extremismos ideológicos.
"A máxima união possível do tribunal em um tema difícil, autenticamente difícil, um hard case, é um valor a ser buscado", disse, defendendo o papel moderador da Corte em contextos de tensão social.
O ministro também se debruçou sobre o conceito de liberdade de expressão, rejeitando a noção de que regulação compromete a liberdade. Citando o Federalista 51, de James Madison, sustentou que o liberalismo clássico já previa não apenas limites ao poder estatal, mas também contenções a "poderes privados abusivos".
Segundo Dino, é "absolutamente falsa" a ideia de que qualquer regulação seria inimiga da liberdade.
Ao contrário, afirmou que esse argumento esconde uma visão ideológica que subverte a tradição liberal e o modelo constitucional brasileiro. "Provavelmente, noção ideológica sobre a liberdade de expressão é a delas, porque visam negar este patrimônio teórico do liberalismo", criticou, referindo-se às leituras que dissociam liberdade de responsabilidade.
Também condenou o que chamou de "anarquismo seletivo": a defesa de liberdade irrestrita apenas quando conveniente a interesses particulares.
Reforçando que "não existe liberdade sem responsabilidade em termos constitucionais", Dino afirmou que a liberdade desprovida de limites pode se transformar em tirania.
"Liberdade sem responsabilidade é tirania, e este é um conceito assentado não só na nossa Constituição, como na tradição filosófica que nós preservamos."
Durante o voto, o ministro compartilhou experiências pessoais e episódios que marcaram sua trajetória pública.
Citou a leitura do livro "Aconteceu com a minha filha", de Paulo Zsa Zsa, que narra a história de uma adolescente que, a partir do uso de jogos como Minecraft e Roblox, passou a acessar ambientes nocivos como Discord e deep web, culminando em um quadro de depressão e automutilação. "É um livro que um pai, um tio, um avô chora lendo", comentou, alertando para o risco de barbárie diante da ausência de regulação.
Dino também relembrou o período mais desafiador de sua vida pública: os ataques a escolas no primeiro semestre de 2023, quando ocupava o cargo de ministro da Justiça.
Referindo-se aos atentados em São Paulo e Blumenau, relatou que o que mais o impactou foi "o fato de envolver crianças".
Com o auxílio de slides, exibiu postagens de redes sociais que incentivavam massacres escolares, inclusive homenageando o aniversário de Adolf Hitler, em 20 de abril. Uma dessas mensagens, segundo o ministro, foi atribuída a Guilherme Taucci, um dos autores do massacre de Suzano, ocorrido em 2019.
A repercussão dessas mensagens levou a mais de 8 mil denúncias de ameaças em escolas e à deflagração de centenas de operações policiais preventivas.
Para Dino, o episódio evidenciou a perversidade da arquitetura algorítmica das plataformas. Contou que a então secretária de Direitos Digitais do MJ/SP, Estela Aranha, ao buscar conteúdos sobre ameaças, passou a receber ainda mais postagens do mesmo tipo. "O algoritmo interpretava que ela gostava desse tipo de conteúdo. Isso é extraordinário. Não pode haver algo mais eloquente para mostrar o quão perversa é essa arquitetura", afirmou.
O ministro alertou para a insuficiência do modelo atual, que exige ação judicial para cada remoção de conteúdo nocivo, tornando a atuação estatal praticamente inviável.
Defendeu, assim, uma regulação eficaz e coordenada, com o objetivo de proteger direitos fundamentais como a vida, a integridade e a infância, e não de cercear a liberdade de expressão.
Ironizou a tese de que o STF estaria agindo de forma autoritária.
"Não são ministros ou juízes que acordaram pela manhã e, num propósito liberticida, resolveram tolher a liberdade de expressão das pessoas."
E rejeitou a ideia de que empresas privadas possam se autorregular sem controle externo.
"Nem os cônjuges nos lares se autorregulam."
Segundo Dino, a autorregulação só é legítima quando submetida aos valores constitucionais.
Para reforçar o ponto, recorreu à inteligência artificial da empresa Meta, controladora de Facebook, Instagram e WhatsApp. Ao perguntar à ferramenta se a liberdade de expressão era absoluta, recebeu como resposta que o direito comporta restrições - como discurso de ódio, difamação e ameaças à ordem pública.
Com ironia, afirmou: "Eu só espero que não peguem o passaporte da Meta", em referência à a ameaça de recolhimento do passaporte de Moraes pelo governo dos EUA.
"Até o algoritmo sabe que liberdade sem responsabilidade representa um perigo", concluiu.
Ao final, Dino propôs a seguinte tese:
"1. O provedor de aplicações de internet poderá ser responsabilizado civilmente nos termos do art. 21 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), pelos danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros, ressalvadas as disposições específicas da legislação eleitoral e os atos normativos expedidos pelo TSE. O regime do art. 19 da citada lei aplica-se exclusivamente a alegações de ofensas e crimes contra a honra.
2. São considerados atos dos próprios provedores de aplicação de internet, podendo haver responsabilidade civil, independente de prévia notificação judicial ou extrajudicial, nos termos do art. 927, "caput", do Código Civil:
A) Postagens de perfis com anonimização do usuário, vedada pelo art. 5°, IV, da Constituição Federal, que gere obstáculos à responsabilização, incluindo perfis falsos e chatbots (robôs);
B) Ilicitudes veiculadas em anúncios pagos e postagens patrocinadas, ou mecanismos similares.
3. Na hipótese de configuração de falha sistêmica, os provedores podem ser responsabilizados civilmente nos termos do art. 14, § 1º, II, do Código de Defesa do Consumidor, pelos conteúdos criados por terceiros nos seguintes casos, em rol taxativo:
A) Crimes contra crianças e adolescentes;
B) Crime de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio ou à automutilação previsto no art. 122 do Código Penal;
C) Crime de terrorismo, nos termos da Lei nº 13.260/2016;
D) Fazer apologia ou instigar violência, ou grave ameaça, visando à prática dos crimes contra o Estado Democrático de Direito devidamente tipificados em lei.
3.1. Para fins da responsabilidade civil prevista neste item, considera-se falha sistêmica, imputável ao provedor de aplicações de internet, deixar de adotar adequadas medidas de segurança contra os conteúdos ilícitos anteriormente listados, configurando violação aos deveres específicos de prevenção e precaução, assim como do dever de cuidado necessário aos provedores citados.
3.2 Consideram-se adequadas as medidas que, conforme o estado da técnica, forneçam os níveis mais elevados de segurança para o tipo de atividade desempenhada pelo provedor.
3.3 A existência de conteúdo ilícito de forma atomizada e isolada não é, por si só, suficiente para configurar a responsabilidade civil de acordo com este item. Contudo, uma vez recebida notificação extrajudicial sobre a ilicitude, passará a incidir a regra estabelecida no artigo 21 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet).
3.4 Em tais hipóteses, o autor do conteúdo poderá requerer judicialmente o seu restabelecimento, mediante demonstração da ausência de ilicitude. Ainda que o conteúdo seja restaurado por ordem judicial, não haverá imposição de indenização ao provedor.
4. Os provedores de aplicações de internet deverão editar autorregulação que abranja, necessariamente, um sistema de notificações, um devido processo e relatórios anuais de transparência em relação a notificações extrajudiciais, anúncios e impulsionamento.
4.1 Tais regras deverão ser publicadas e revisadas periodicamente, de forma transparente e acessível ao público.
4.2 As obrigações mencionadas neste item 4 serão monitoradas pela Procuradoria Geral da República, até que sobrevenha lei específica regulando a autorregulação dos provedores de aplicação de internet."
Veja trechos da propositura da tese:
Fonte: Migalhas.