MPF ajuíza ação para defender direito de pessoas com deficiência em concurso da Polícia Federal
quinta-feira, 11 de março de 2021, 17h04
Edital do certame exigiu laudo de equipe multiprofissional para atestar deficiência na inscrição, o que contraria o Estatuto das Pessoas com Deficiência e outras leis; mais de 1,7 mil candidatos foram prejudicados e não tiveram as inscrições deferidas
O Ministério Público Federal (MPF), por meio da Procuradoria da República dos Direitos do Cidadão (PRDC), ajuizou ação civil pública contra a União, com pedido de tutela de urgência, para que seja excluída do edital do concurso da Polícia Federal a exigência quanto à apresentação pelos candidatos com deficiência, já na fase de inscrições, de parecer emitido por equipe multiprofissional e interdisciplinar formada por três profissionais da área de saúde. O MPF quer, ainda, que seja reaberto o prazo para possibilitar a inscrição daqueles que não conseguiram se inscrever em virtude de tal exigência.
O MPF pede que seja reconhecida a evidente ilegalidade da regra do art. 3º, inciso IV, do Decreto n.º 9.508 de 2018, que regulamentou a reserva de vagas para pessoas com deficiência em concursos públicos no âmbito da União e o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n.º 13.146/2015).
Segundo apurado pelo MPF, os candidatos com deficiência foram obrigados a apresentar parecer emitido, no máximo, nos últimos 12 meses anteriores à publicação do Edital n.º 1/DGP/DPF, de 15 de janeiro de 2021, por equipe multiprofissional e interdisciplinar formada por três profissionais, entre eles um médico, que deve atestar a espécie e o grau ou o nível de sua deficiência, com expressa referência ao código correspondente da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), bem como a provável causa da deficiência, contendo as assinaturas e os carimbos dos profissionais especializados com o número de suas inscrições nos respectivos conselhos fiscalizadores da profissão.
Para o MPF, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que é regulamentado pelo decreto, não demanda nenhuma prova antecipada de candidatos. Logo, a exigência é ilegal na medida em que cria barreiras para o acesso ao cargo público não previstas em Lei.
Incoerência. Segundo o relato de uma das candidatas, com uma deficiência monocular, ela enviou o laudo mais recente que possuía, com todos os dados mais atuais, mas assinado apenas por um oftalmologista. Ela relatou não ter condição financeira para realizar três consultas, mas, mesmo assim, teve a inscrição no concurso indeferida. Mas o mesmo laudo já foi aceito para inscrição em outros concursos e, além disso, a deficiência da candidata já foi atestada em perícias realizadas pela própria banca que agora organiza o concurso da PF.
Assim como essa candidata, o Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção de Promoção de Eventos (Cebraspe), responsável pelo concurso, informou ao MPF que no total 1.739 candidatos com deficiência tiveram as inscrições indeferidas por não conseguiram apresentar laudo multiprofissional e interdisciplinar no ato de inscrição no concurso e foram impedidas de participar do certame.
Recomendação. Em fevereiro o MPF já tinha recomendado à Polícia Federal que corrigisse o seu edital e retirasse o item 5.2 do edital que exigia os três laudos, mas em resposta a PF informou que a exigência encontrava fundamento no Decreto nº 9.508/2018 e que os candidatos às vagas reservadas a pessoas com deficiência deviam apresentar o laudo multidisciplinar.
Prazo mínimo. A ação ressalta também que, além da inovação ilegal, o prazo dado aos candidatos com deficiência foi muito curto. O edital foi publicado no dia 15 de janeiro e os candidatos com deficiência tiveram do dia 22 daquele mês ao dia 9 de fevereiro, o prazo para inscrições, para elaboração e apresentação do parecer multidisciplinar, isso em meio à pandemia de covid-19.
Vícios. Na ação, o MPF cita três ilegalidades do art. 3.º, inc. IV, do Decreto n.º 9.508/2018. A primeira é de caráter formal. O decreto extrapola as disposições estabelecidas no Estatuto a qual deve regulamentar. O estatuto prevê a realização de exame psicossocial seguido de parecer emitido por equipe multiprofissional e interdisciplinar, mas não há ali hipótese legal de realização de exame anterior ao ato da inscrição, tampouco mediante o fornecimento, pelo candidato, de parecer médico elaborado por junta multidisciplinar como pré-condição para realizar a inscrição.
A segunda ilegalidade, de natureza material, é da violação da Lei 8.112/1990, que trata do regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Segundo a Lei, os candidatos com deficiência têm direito assegurado a inscrição nos concursos públicos e que na posse dependerá de prévia inspeção médica oficial. Então a comprovação se o candidato com deficiência é apto ou não somente deve ocorrer, no mínimo, quando do ato de investidura, o que se dá com a posse no cargo.
A terceira ilegalidade é a possibilidade de o Chefe do Poder Executivo criar barreiras e dificuldades para as pessoas com deficiência nos concursos e cargos públicos, violando assim o princípio do Amplo Acesso ao Cargo Público, previsto no art. 37, inciso I, da Constituição Federal.
“Sem dúvida, o Decreto poderia alargar as hipóteses de integração socioeconômica e cultural das pessoas com deficiência, mas jamais afastar, reduzir, enfim, retroceder nos direitos assegurados legal e constitucionalmente”, defende o procurador da República Helder Magno da Silva.
O procurador lembra que a exigência também viola outro princípio constitucional, o da igualdade, previsto no art. 5º, tanto na ótica formal quanto material, pois também é requerido dos candidatos não deficientes aptidões física e mental para ocupação do cargo público, mas a respectiva demonstração somente deve ser feita no ato da posse.
“Logo, com a edição do Decreto, a apresentação de parecer multidisciplinar por pessoas com deficiência criou dupla obrigação que não é cobrada dos demais candidatos (‘sem deficiência’); ao exigir prévio parecer profissional e às custas do próprio candidato com deficiência, o Decreto ilegal impõe-lhe encargos financeiros na inscrição e novamente na posse que aniquilam as iguais oportunidades projetadas pela legislação”, diz a ação.
Pedidos. O MPF pediu alternativamente que seja possibilitado o aceite dos laudos médicos, desde que de profissional inscrito no Conselho Regional de Medicina (CRM), que atestem a espécie e o grau ou nível da deficiência do candidato (mantendo-se a expressa referência ao código correspondente da Classificação Internacional de Doenças (CID), bem como a provável causa da deficiência. Também pediu que seja feita uma reanálise dos pedidos indeferidos, de forma a permitir as inscrições na modalidade de cota reservada à pessoa com deficiência para os candidatos que tenham apresentado relatório e, se for o caso, inclusive a prorrogação do prazo para pagamento da inscrição.
(ACP nº 1010936-16.2021.4.01.3800 – Pje)