Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Jurisprudência TJGO - Curatela. Incapacidade absoluta reconhecida. Extensão dos poderes da curatela para atos da vida civil e extrapatrimoniais

sexta-feira, 03 de dezembro de 2021, 12h58

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INTERDIÇÃO (CURATELA). DOENÇAS DE NATUREZA PERMANENTE (AUTISMO, DEFICIÊNCIA MENTAL, EPILEPSIA). INCAPACIDADE ABSOLUTA RECONHECIDA. EXTENSAO DOS PODERES DA CURATELA PARA ATOS DA VIDA CIVIL E EXTRAPATRIMONIAIS. SENTENÇA REFORMADA. 1. A previsão do art. 6º do Estatuto da Pessoa com Deficiência, no sentido de que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, deve ser interpretada em conjunto com o art. 84, § 1º do mesmo diploma, o qual estabelece que, quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela. 2. No caso em concreto, é cabível a reforma da sentença para estender os efeitos da curatela para os atos da vida civil, pois as capacidades de entendimento e autodeterminação do Apelado estão comprometidas em virtude das seguintes doenças: autismo de alto grau (CID 10. F-84.0), deficiência intelectual (CID 10. F-71.1) e epilepsia em espícula onda contínua durante o sono lento EMES (CID 10. G-40.0), que foram atestadas por perícia judicial. 3. APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDA E PROVIDA.(TJGO 54999848920188090051, Relator: DESEMBARGADOR GUILHERME GUTEMBERG ISAC PINTO - (DESEMBARGADOR), 5ª Câmara Cível, Data de Publicação: 04/11/2021).

 

Inteiro Teor

Gabinete do Desembargador Guilherme Gutemberg Isac Pinto

APELAÇÃO CÍVEL Nº 5499984.89.2018.8.09.0051

5ª CÂMARA CÍVEL

COMARCA DE GOIÂNIA

APELANTE: 

APELADO: 

RELATOR: DES. GUILHERME GUTEMBERG ISAC PINTO

VOTO

Conforme relatado, trata-se de APELAÇÃO CÍVEL PEREIRA e (...) interposta por (...) (mov. 153), em face da sentença proferida pelo MM. Juiz de Direito da 5ª Vara de Família da Comarca de Goiânia, Dr. Mábio Antônio Macedo, nos autos da ação de interdição (curatela), ajuizada em desfavor de (...), ora Apelado, que apresentou o seguinte desfecho (mov. 132):

(…) Ante ao exposto, com a devida intervenção ministerial, reconhece-se a situação de curatela quanto à pessoa de (...), para que surta seus legais efeitos, nomeando-lhe curadores os requerentes (...), sob compromisso, limitada a curadoria à assistência da curatelada na prática de atos de natureza patrimonial e negocial, consoante artigo 85, com a ressalva dos seus §§ 1º e 2º, da Lei 13.146/15, dispensada a especialização de hipoteca legal, devendo prestar contas anualmente.

Esta servirá de termo de curatela definitivo e compromisso, bem como ofício e mandado, assinada também pelos curadores e inserida no processo em cinco dias desta, acompanhada da certidão de trânsito em julgado e cópia dos documentos pessoais das partes.

Expeça-se alvará, autorizando o perito Vinícios Martins da Cunha a levantar todo o restante do valor depositado na conta judicial (...), vinculada aos presentes autos, conforme comprovante do e. 47, transferindo o valor para a conta informada no e. 123.

Irresignados, em suas razões recursais, os Apelantes defendem : (a) necessidade de curatela do Apelado para todos os atos da vida civil; (b) incapacidade absoluta. E, no mérito, requerem a reforma da sentença para o fim de estender a curatela a todos os atos da vida civil, inclusive extrapatrimoniais.

1. Da admissibilidade recursal

Presentes os pressupostos processuais atinentes à espécie, conheço do recurso e, inexistindo preliminares ou matérias a serem dirimidas de ofício, passo ao mérito.

2. Do mérito

Cinge-se a controvérsia recursal acerca dos limites dos poderes concedidos aos Curadores para a tomada de decisões em nome do Apelado.

De início, pontuo que a disciplina das capacidades no Código Civil, calcada na ideia de discernimento, foi bastante alterada pelo art. 114 do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/15).

A alteração promovida pela lei em questão afetou drasticamente o Código Civil que passou a prever como absolutamente incapazes, em seu art. , apenas os menores de 16 (dezesseis) anos.

Além disso, o art.  do CC passou a disciplinar que deverão ser considerados relativamente incapazes os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos, os ébrios habituais e os viciados em tóxico, aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade, e os pródigos, ou seja, com a modificação legal promovida, buscou-se esclarecer que a deficiência física, mental ou intelectual não gera, a priori, incapacidade absoluta ou relativa.

A previsão dos artigos  e  do Código Civil, alterados pelo art. 114 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, é complementada pelo disposto no art.  do último diploma, que tem a seguinte redação:

Art. 6º. A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:

I – casar-se e constituir união estável;

II – exercer direitos sexuais e reprodutivos;

III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;

IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;

VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

Da leitura do dispositivo acima, percebe-se que a incapacidade decorrente da ausência de discernimento (que não é sinônimo de deficiência) preserva a autonomia privada no campo patrimonial.

Diante disso, cabe ao julgador, quando posto ao seu crivo, realizar uma interpretação teleológica e sistematicamente, a fim de que alcancem seu verdadeiro intento e se compatibilizem com as demais normas do ordenamento jurídico.

É louvável, como bem salientou a douta Procuradora-Geral de Justiça, Dra. Estela de Freitas Rezende, que as alterações advindas com o Estatuto da Pessoa com Deficiência buscou conferir maior autonomia às pessoas com deficiência, retirando-lhe possíveis estigmas decorrentes do processo de interdição.

Todavia, como já dito, uma interpretação meramente literal de suas regras podem retirar a proteção que o ordenamento quis conferir às pessoas que, por razões diversas, não apresentam total discernimento para a prática dos atos da vida civil, como é o caso do Apelado.

Sendo assim, a previsão do art. 6º do Estatuto, no sentido de que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para a prática dos atos ali arrolados, de ordem eminentemente existencial, deve ser interpretada no sentido de que a pessoa com deficiência pode praticar os atos da civil, especialmente aqueles ligados aos direitos da personalidade.

No entanto, caso a capacidade de entendimento e autodeterminação da pessoa com deficiência for reduzida em maior ou menor grau, afigura-se perfeitamente possível a recomendável a instituição de curatela ou do procedimento de tomada de decisão apoiada para a consecução de determinados atos, especialmente aqueles de ordem patrimonial.

A ideia que ora apresento encontra respaldo no art. 84, § 1º do Estatuto da Pessoa com Deficiência que estabelece que, quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei, ao passo que o § 2º faculta à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada.

O processo de tomada de decisão apoiada, por sua vez, seria aplicável às pessoas com deficiência que, embora capazes, necessitem de auxílio de outrem para decidir sobre determinadas questões, o que não é o caso dos autos.

Sendo assim, através de uma interpretação sistemática e teleológica dos diplomas legais impõe a conclusão de que as pessoas que não consigam exprimir sua vontade por causa transitória ou permanente (doença mental), devem ser consideradas relativamente incapazes.

Todavia, dependendo do grau de comprometimento das faculdades mentais da pessoa, poderá ela submeter-se à curatela total ou parcial.

No caso em concreto, afigura-se perfeitamente cabível a extensão dos efeitos da curatela para os atos da vida civil, pois conforme os Apelante as capacidades de entendimento e autodeterminação do Apelado estão comprometidas em virtude das seguintes doenças: autismo de alto grau (CID 10. F-84.0), deficiência intelectual (CID 10. F-71.1) e epilepsia em espícula onda

Por pertinente, colaciono a conclusão do perito: “Do ponto de vista psiquiátrico e médico pericial, requerido não possui o necessário discernimento para gerir, por si só, a sua pessoa e seus bens, sendo esta incapacidade permanente .” (destaquei)

A perícia realizada sob o crivo do contraditório também concluiu que o interditando não é capaz de executar ações da vida diária sozinho, tais como tomar banho ou usar vaso sanitário, locomover-se com transporte público, atravessar a rua, obedecer a ordens simples e que dispõe de cuidadores para cuidar de sua saúde, dispondo de equipe multiprofissional desde a infância .

Desse modo, sob a ótica médico psiquiátrica, o Recorrido, por si só, é total e permanentemente incapaz para os atos da vida civil, necessitando de curador para representá-lo em todos os atos da vida civil.

O laudo pericial corrobora os demais elementos de informação trazidos aos autos, em especial o relatório médico e laudo psicológico, (mov. 01, arquivos 09, 10) que já sinalizavam para o quadro de saúde mental do interditando, que lhe retira o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil.

Nesse sentido, considerando que se trata de pessoa totalmente incapaz para gerir os atos da vida, divergindo do douto parecer ministerial, calcado pelo bom senso, que também é um viés da prestação jurisdicional, é cabível a extensão dos efeitos da curatela do interditando para todos atos da vida civil.

Portanto, tendo em vista que a total falta de discernimento da requerida para os atos da vida civil foi percebida e retratada nitidamente nos autos, não resta a mais pálida dúvida sobre a inexistência de plena capacidade do interditando, razão pela qual a reforma da sentença é medida que se impõe.

3. Do dispositivo

Ante o exposto, CONHEÇO DO RECURSO DE APELAÇÃO e DOU-LHE PROVIMENTO , para, em reforma à sentença, estender a curatela do interditando para os atos da vida civil, inclusive extrapatrimoniais.

É o voto.

(Datado de assinado em sistema próprio).

DES. GUILHERME GUTEMBERG ISAC PINTO

Relator

APELAÇÃO CÍVEL Nº 5499984.89.2018.8.09.0051

5ª CÂMARA CÍVEL

COMARCA DE GOIÂNIA

APELANTE: 

APELADO: 

RELATOR: DES. GUILHERME GUTEMBERG ISAC PINTO

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os presentes autos da Apelação Cível nº 5499984.89.2018.8.09.0051.

Acorda o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, pela Terceira Turma Julgadora de sua Quinta Câmara Cível, à unanimidade de votos, em conhecer da Apelação Cível e dar-lhe provimento, nos termos do voto do Relator.

Votaram acompanhando o Relator, os Excelentíssimos Desembargadores Kisleu Dias Maciel Filho e Maurício Porfírio Rosa .

Presidiu a sessão de julgamento o Excelentíssimo Senhor Desembargador Maurício Porfírio Rosa .

Representou a Procuradoria-Geral de Justiça o Dr. José Carlos Mendonça.

(Datado e assinado em sistema próprio).

GUILHERME GUTEMBERG ISAC PINTO

Desembargador

Relator

 


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