OPINIÃO
A Contrarreforma Psiquiátrica: A Participação Popular - Parte I

por CARLOS RUBENS e FELIPE MARTINS
terça-feira, 26 de janeiro de 2021, 14h43
Em 04 de agosto de 2020, os autores deste artigo publicaram o texto "Breves anotações sobre a Resolução 320 do Conad" em que questionaram a legalidade e validade ética e moral da Resolução nº 03 do Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (CONAD), que incentivou a internação de adolescentes que fazem uso e/ou abuso de álcool e outras drogas em Comunidades Terapêuticas. Tal medida, além de ignorar o porquê desses jovens recorrerem ao abuso de substâncias psicoativas na fase mais pujante de suas vidas, preconizava que medidas restritivas de direitos e de liberdade - de caráter punitivo - poderiam ser usadas como forma de tratamento. Ao fazer tal denúncia, trouxeram à luz algumas reflexões: “quais os caminhos dos nossos marcos regulatórios históricos na atual conjuntura? O devido acesso à Saúde e ao SUS se manterá como um direito!? E qual o nosso papel diante deste cenário?”.
No dia 8 de dezembro 2020, alguns destes questionamentos começaram a ser respondidos, segundo consta no próprio site do Ministério da Saúde "Nota Saúde Mental" , com a criação de um Grupo de Trabalho com representantes do Ministério da Saúde, da Cidadania, do Conselho Federal de Medicina, da Associação Brasileira de Psiquiatria, do Conass e do Conasems visando analisar e discutir as políticas de assistência psicossocial no país. Não que tais respostas venham a elucidar um cenário já conturbado e permeado de incertezas. Muito pelo contrário, elas buscam deixar a água mais turva. E tal se deu em um momento muito sensível, pois o tema da saúde mental ganhou maior relevância diante do cenário imposto pela Pandemia da COVID-19.
Primeiramente, é necessário salientar que a história da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial no Brasil não é recente. Seu início se dá em meados da década de 1970 e ocorreu em um contexto de redemocratização do nosso país. Podemos ainda apontar para três marcos históricos que devem ser sempre lembrados: o Encontro dos Trabalhadores da Saúde Mental, em Bauru/SP (18 de maio), a I Conferência Nacional de Saúde Mental, em Brasília, em 1987, bem como a Lei 10.216/2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica). Vale notar que a lei 10.216/2001 nasceu de um projeto de lei de 1989! Isso demostra a dificuldade de se caminhar na pauta trazida pelos cuidados necessários em saúde mental, dentro do campo da saúde coletiva, por outrora ser um tema com pouca visibilidade. Afinal, a “loucura” e os comportamentos indesejados eram tradicionalmente escondidos dos olhos das pessoas e afastados da vida em comunidade. Importante relembrar que todos esses movimentos foram precedidos ou propriamente organizados por usuários, seus familiares e trabalhadores.
Por outro lado, algo que salta aos olhos na constituição do Grupo de Trabalho capitaneado pelo Ministério da Saúde, que visa discutir a Reforma Psiquiátrica, é a ausência dos usuários e/ou seus representantes. Por mais que o discurso justificador da criação desse GT seja o de dar legitimidade a tal movimento de reforma da Reforma (ou “Contrarreforma”), tal se dissocia da realidade, pois justamente os mais interessados na formulação desta política pública foram excluídos das tomadas de decisões.
Nota-se também a ausência dos Conselhos de Direitos, como o Conselho Nacional de Saúde, a exemplo do que ocorreu com os Conselhos de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes, que não foram sequer ouvidos ou consultados quando da edição da Resolução nº 3 do Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (CONAD), que previu a internação de crianças e adolescentes em comunidades terapêuticas.
Sabe-se que a Reforma Psiquiátrica foi cunhada como um movimento de busca de direitos, dignidade e cidadania, protagonizada pelos familiares e usuários, cujo direito de participar ativamente das escolhas das políticas públicas fortalece a lógica de cuidado às pessoas com transtorno mental, embasadas em estratégias territoriais com serviços e equipamentos comunitários, sempre na ótica da inclusão e protagonismo daqueles que estavam à margem dos serviços de saúde e assistência.
Em oposição ao modelo manicomial-asilar, que tinha na contenção (física e química) e no isolamento social a sua lógica, busca-se hoje uma odisseia de inclusão e quebra de estigmas e vergonha imputados pela condição de adoecimento ou, simplesmente, por uma forma diferente de existir.
É preciso conhecer e compreender a realidade dos usuários dos serviços, para escolher com eles qual a melhor estratégia de atuação, para evitar julgamentos dissociados da realidade.
Na versão ministerial, em discurso com o mesmo tom do já expressado pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), o objetivo do Grupo de Trabalho seria “a construção de uma rede de assistência à saúde mental essencialmente segura, eficaz, integral, humanizada, com abordagens e condutas baseadas em evidências científicas, e norteada por especialistas da área da saúde”. No entanto, justifica sua criação afirmando que “existem mais de 100 portarias relativas à saúde mental que estabelecem diretrizes para o tratamento e a assistência dos pacientes – e de seus familiares – (…)” e “Após minuciosa análise de técnicos e especialistas da área, observou-se que muitas dessas portarias estão obsoletas, o que confunde gestores e dificulta o trabalho de monitoramento e a efetiva consolidação das políticas de saúde mental”. Não obstante tais afirmações, nota-se que não existe a indicação dos nomes dos especialistas, tampouco documentos ou estudos apontando quais normas seriam obsoletas. Há que se questionar quais pontos impediriam avanços, bem como o que precisaria ser mudado ou melhorado. Mas nada consta claramente, nem foram trazidas as evidências científicas que justificariam a criação deste grupo de trabalho.
Apesar da aparente legalidade da discussão, é importante observar o que o sistema jurídico prevê: a Constituição da República, que é a norma central do ordenamento jurídico brasileiro, em seu art. 198 afirma que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, tendo como uma de suas três diretrizes a participação da comunidade.
A Lei 8080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, mais conhecida como Lei do SUS, em seu artigo 7º trata dos Princípios e Diretrizes do SUS, sendo que garante, no inciso VIII, a participação da comunidade.
A Lei 10.216/01, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas acometidas com transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, em seu artigo 3º afirma: “É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, ‘com a devida participação da sociedade e da família’.”
Já em seu artigo 12, há uma norma programática prevendo que o “Conselho Nacional de Saúde, no âmbito de sua atuação, criará comissão nacional para acompanhar a implementação desta Lei”. Ora, se a Lei 10.216/2001 ainda não foi totalmente implementada, continuando como um projeto inconcluso, certo é que o Conselho Nacional de Saúde deve participar de todas as discussões sobre a reforma psiquiátrica e sua consequente implementação.
No mesmo sentido, a Lei de Drogas, quando trata dos princípios do Sistema Nacional de Políticas Sobre Drogas, em seu artigo 4º, inciso I, assegura o “respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade”. Continua a Lei de Drogas tratando “da promoção da responsabilidade compartilhada entre Estado e Sociedade, reconhecendo a importância da participação social nas atividades do Sisnad”. Por fim, em seu artigo 8º-D, inciso II, (incluído no ano de 2019 pela Lei nº 13.840), viabiliza a “ampla participação social na formulação, implementação e avaliação das políticas sobre drogas”.
Ora, como pode se chegar aos objetivos da Carta Magna, da Lei de Drogas, da Lei 10.216/2001 e da Lei 8080/90, se não se respeita os seus principais objetivos que envolvem o atendimento integral e humanitário às pessoas? Se a sociedade e os usuários dos serviços não são ouvidos, como criar uma lei ou política minimamente útil e eficaz, tendo em vista que a participação do usuário e seu protagonismo também fazem parte de seu tratamento?
Nesse ponto, não basta que a ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria) atue como sociedade civil organizada, supostamente legitimando as decisões do governo. Pelo contrário! Tal associação sequer representa toda a classe dos psiquiatras, quiçá alcança tal patamar de superioridade em relação aos demais setores e classes profissionais que atuam na Rede de Atenção Psicossocial, como psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, técnicos de enfermagem, terapeutas ocupacionais, redutores de danos, oficineiros, entre outros atores.
Em face de tamanha celeuma, formou-se uma Frente Ampliada em Defesa da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, com usuários, familiares e profissionais das mais diversas áreas, buscando articular diversos setores da sociedade.
Toda política pública deve ser decidida com a participação plena e direta dos membros do grupo por ela afetado. É a premissa das conferências de saúde, assistência e infância. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) aprovou, em 14 de dezembro de 2020, a Resolução nº 652, que convocou a 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental (5ª CNSM), cuja etapa nacional será realizada em Brasília, entre os dias 17 e 20 de maio de 2022.
Assim, a saúde, como pressuposto da democracia, com a reforma psiquiátrica brasileira sendo um marco dentro da reforma sanitária como um todo, merece atenção especial do Ministério Público e de todos aqueles que buscam uma sociedade mais livre, justa e solidária, incluindo-se, certamente, os cidadãos.
"Nihil de nobis, sine nobis" ou “nada sobre nós sem a nossa presença”! A máxima latina, traduzida e atualizada, representa a efetiva participação do cidadão no processo democrático, na escolha das melhores políticas públicas, ou, pelo menos, a escolha por políticas que não desmontem conquistas históricas.
À guisa de conclusão, o que chamamos de “Contrarreforma Psiquiátrica” deve ser tratada e enfrentada sob vários enfoques. Para isso, uma série de artigos temáticos vêm sendo pensados para analisar o contexto de questões tão importantes para a nossa sociedade.
*Carlos Rubens de F. Oliveira Filho é Promotor de Justiça e especialista em Direito Público
*Felipe A. Martins é psicólogo, membro da ABRAMD, mestrando pela Faculdade de Saúde Pública da USP, Conselheiro Executivo do Conselho Municipal de Álcool e Outras Drogas da cidade de São Paulo/SP