O Ministério, a Democracia e a Legalidade da nomeação do Procurador-Geral pelo Governador do Estado

por José Carlos Cosenzo
terça-feira, 30 de dezembro de 2014, 13h57
A essência de um governo pautado pela democracia é evidenciada pelo estado Democrático de Direito regido pela Constituição Federal, ou seja, a superioridade do governo das leis em relação ao governo dos homens, visando impedir o abuso do poder e a garantia da segurança jurídica.
A história afirma terem sido os gregos seus descobridores, não apenas da democracia, mas também da política, que pode ser definida como “a arte de decidir através da discussão pública e da obediência às decisões da maioria como condição necessária da existência social civilizada”. A democracia, por ser um regime de igualdade e liberdade política no qual o poder flui de baixo para cima - e não se impõe do alto da pirâmide para a base da sociedade -, requer o respeito a certas regras do jogo político, nas quais se incluem as eleições livres e periódicas. Não há democracia sem eleições, mas só a existência de eleições livres não configura a democracia, pois estas devem conferir a plena igualdade entre os concorrentes.
A igualdade democrática de um governo que emana do povo pressupõe a inclusão de todos no processo deliberativo eleitoral, sem discriminação de qualquer espécie e sem as distorções da fraude eleitoral. A liberdade democrática, por sua vez, exige o pluralismo de posicionamentos e informações. Assim, não existe democracia sem uma atmosfera de liberdade e sem espaço para formação de opinião pública. Por isso, também, são relevantes os direitos básicos como a liberdade pessoal, que pode ser traduzida como a liberdade de viver sem medo, a liberdade de consciência e de religião; a liberdade de imprensa; a liberdade de reunião e de associação e também de direitos econômico-sociais, asseguradores do efetivo espaço da opinião pública, como a liberdade de viver ao abrigo da necessidade e o direito à educação.
Com esse espírito, depois de um longo período de exceção onde os direitos individuais e sociais eram restritos aos interesses dos detentores do poder, uma Assembleia Nacional Constituinte convocada pelo povo brasileiro elaborou a Carta de 88, a mais humanista da nossa história. Os representantes do povo, na sonhada construção do novo estado democrático de direito, vislumbraram que para sua efetividade e segurança, haveria de existir uma instituição suficientemente forte, independente, com seus agentes preparados para utilizar as ferramentas em favor do novo regime, e também voltados à intransigente defesa da sociedade.
Inúmeras apresentaram suas propostas, mas o Ministério Público demonstrou que seria uma instituição voltada ao trabalho de construção e ser o agente transformador da realidade social. Foi então contemplado com a grave missão da defesa do regime democrático, a quem foram outorgadas ferramentas legais para dela se desincumbir.
A importância da Constituição de 88 para o Ministério Público tem que ser compreendida, não de um ponto de vista restrito ao Ministério Público, mas sim considerando-o dentro do conjunto de instituições de uma Constituição profundamente humanista. Esse é o ponto principal, porque o tratamento do Ministério Público na Constituição não se deu exclusivamente para uma criação formal, mas para erigir uma instituição que é instrumento fundamental para a realização dos valores que a Constituição consagrou. A Constituição de 1988 não é um ponto de chegada, mas um ponto de partida para a realização de valores humanistas aplicados ao país.
O Ministério Público, portanto, na definição de seus instrumentos de atuação, nos seus princípios e objetivos, nada mais é do que um meio para a realização de um programa que a Constituição instituiu. Isso é essencial. O Ministério Público é um órgão do Estado, não do Governo e muito menos do Executivo, dotado de especiais garantias, com funções ativas ou interventivas, em juízo ou fora dele, para a defesa do interesse da coletividade, principalmente os indisponíveis e os de larga abrangência social. Entretanto, para desenvolver tal desiderato haveria de ter princípios institucionais como a unidade, indivisibilidade e a independência funcional, bem como assegurada a autonomia funcional e administrativa, cujo chefe é escolhido dentre seus membros.
O Procurador-Geral da República é nomeado pelo Presidente da República, enquanto no âmbito dos Estados, o Procurador-Geral através de lista tríplice elaborada dentre seus membros e nomeado pelo Governador do Estado. Mas nem sempre foi assim e a história mostra que até conseguir a garantia da escolha dentre seus pares, em muitas épocas os membros e as chefias eram nomeadas e demissíveis conforme a vontade política prevalente.
Como a democracia transcende a tudo, na esfera federal, onde o Procurador-Geral da República é nomeado pelo Presidente da República, dentre os integrantes da carreira, sem necessidade de indicação em lista tríplice, mas precedido a sabatina e aprovação pelo Senado Federal, entidade de classe a que integram, ANPR- Associação Nacional dos Procuradores da República realiza votação informal para sua composição e a entrega ao Chefe do Executivo. No âmbito estadual, os membros em atividade elegem seus candidatos, podendo escolher “até três” dos inscritos e os mais votados compõem a lista tríplice pode nomear um deles, para mandato de dois anos, permitida uma recondução.
É importante destacar que dentre todas as postulações feitas pelas entidades de classe do Ministério Público, quando realizados os trabalhos constituintes, apenas uma delas não foi contemplada, e justamente aquela em que se pretendia a eleição direta do Procurador-Geral pelos seus pares, sem a intervenção do executivo, de molde a criar plena liberdade e transparência nos atos desenvolvidos entre o fiscalizante e o fiscalizado.
No aspecto jurídico o processo de votação e escolha do chefe do Ministério Público evidencia uma interessante distinção entre “legalidade e legitimidade”. A legalidade está relacionada à forma, enquanto a legitimidade está relacionada ao conteúdo da norma. A legalidade, como acatamento a uma ordem normativa oficial, não possui uma qualidade de justa ou injusta. Todavia, para a verificação da legitimidade da lei, que deve ser compreendida como instrumento de manutenção do poder estabelecido, é fundamental a análise da legitimidade das forças de poder que a estabeleceram, e se esse processo for tido como ilegítimo, a lei decorrente dele será a priori também considerada ilegítima.
De maneira simplista, legalidade nada mais é que o ato praticado sob o império das leis, enquanto legitimidade exige um plus, pois é o referendo daqueles a quem o ato praticado se destina. No caso do Governador do Estado nomear como Procurador-Geral de Justiça um daqueles nomes que compõem a lista tríplice, estará ele praticando um ato dotado de legalidade. Todavia, se impregnado pelo espírito democrático desenvolvido em toda a campanha eleitoral, cujos votos da maioria dos cidadãos o conduziram ao cargo maior do executivo estadual, vier nomear o mais votado na lista tríplice recebida, seu ato será, além de legal, revestido da mais pura legitimidade, porque referendará a vontade de toda a classe responsável por zelar e manter o regime democrático.
Assim é a posição tradicional e intransigente da CONAMP, Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, cujo respeito a seus pares, através do Conselho Deliberativo, composto por todas as entidades de classe representativas dos Promotores e Procuradores de Justiça dos Estados da Federação, editou Resolução e a encaminha a todos os Govenadores do Estado, imediatamente após publicados os resultados das eleições, postulando a nomeação daquele candidato mais votado na lista tríplice.
Hoje, salvo raríssimas exceções, todos os Procuradores-Gerais em exercício no Brasil, são aqueles que figuraram no topo da lista. No Estado de Mato Grosso, os últimos nomeados também foram aqueles mais votados por seus pares.
Entretanto, antes de se ver aqui uma súplica ou correção fraternal em relação ao ato a ser praticado pelo novo Governador do Estado, Dr. Pedro Taques, que deverá nomear o futuro Procurador-Geral de Justiça, o presente texto tem contornos de homenagem antecipada, pois em atitude própria daqueles sabedores dos problemas sociais comprometidos com a democracia, o então eminente Senador da República, quando em campanha eleitoral, ao expor suas ideias e propostas de gestão, em entrevista publicada pela entidade de classe dos membros do Ministério Público deste Estado, a AMMP -Associação Mato-Grossense do Ministério Público, declarou expressamente que iria nomear o mais votado nas eleições.
O fato se torna mais relevante porque a afirmação se deu quando sequer havia iniciado a corrida eleitoral, portanto, sem que se tivesse conhecimento dos candidatos ao honroso cargo. Oriundo do Ministério Público, grande jurista e profundo conhecedor dos anseios institucionais, sabedor de que todos os candidatos são dotados de respeitabilidade, sua antecipação ao ato demonstra reverência à vontade democrática dos ex-colegas e o mais profundo respeito ao povo desta terra, que certamente servirá com independência, coragem, competência e justiça.
São Paulo, 29 de dezembro de 2014.
* José Carlos Cosenzo é Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo, Ex-Presidente da APMP e da CONAMP