Nos EUA, réu por homicídio não intencional em legítima defesa pode ser absolvido
terça-feira, 21 de outubro de 2025, 13h48
O Tribunal Superior de Massachusetts, nos Estados Unidos, criou um precedente para casos de homicídio não intencional. De acordo com a decisão da corte em Commonwealth vs. Kenneth Jose Santana-Rodriguez, um réu que atirou em uma pessoa para defender a própria vida, mas errou o tiro, que acertou — e matou involuntariamente — outra pessoa, pode se beneficiar do instituto da legítima defesa.
No caso perante a mais alta corte de Massachusetts, a cena do crime foi o shopping center Holyoke Mall. Kenneth Santana-Rodriguez levou a namorada a um salão de beleza, onde estava quando foi avistado por Irving Sanchez. Sanchez entrou no salão e iniciou uma discussão com Santana-Rodriguez, a quem acusou de lhe haver roubado a namorada.
A discussão esquentou e Sanchez ergueu a camisa para mostrar uma arma na cintura. Ele colocou a mão na arma e disse: “Você sabe o que está para acontecer”. Mas Santana-Rodriguez foi mais rápido no gatilho. Ele sacou sua própria arma e atirou em Sanchez duas vezes, mas errou os tiros. Uma das balas atingiu o empregado do salão Trung Tran no peito. E o matou.
pessoa que não tinha nada a ver com a briga, nem com a ameaça de morte.
Os ministros do tribunal superior fundamentaram sua decisão de mudar o entendimento, até então prevalecente na lei penal do estado, no princípio do erro na execução do crime (aberratio ictus) — ou transferred intent. Esse princípio passa, então, a ser considerado em ocorrências em que os réus alegam legítima defesa.
Em sua decisão, os ministros se referiram à situação como transferred intent self-defense para justificar o assassinato não intencional de uma vítima. “Concluímos que a alegação do réu de legítima defesa contra um agressor pode escusar o assassinato não intencional de uma vítima, tal como uma pessoa inocente que estava nas proximidades da ocorrência”, escreveram os ministros.
“Aqui, a Commonwealth declara que faz sentido adotar uma forma limitada de legítima defesa com intenção transferida. Admite que um réu tem o direito de ser absolvido da acusação de homicídio em primeiro grau pela morte de uma vítima não intencional se ele ou ela agiu no exercício adequado e prudente da legítima defesa e sem negligência”, acrescentaram.
Exemplo didático da intenção transferida
Se a pessoa A atira na pessoa B com a intenção de matá-la, mas erra o tiro e mata acidentalmente a pessoa C, a intenção de matar a pessoa B é transferida para a pessoa C. O atirador é culpado por assassinar a pessoa C, da mesma forma que o seria pelo assassinato da pessoa B.
Esse exemplo, dado por sites jurídicos nos EUA, é o mesmo que foi oferecido no Brasil em precedente estabelecido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal sobre erro na execução de crime:
“O art. 73 do Código Penal prevê hipótese de aproveitamento do dolo, ou seja, quando alguém tem por objetivo ferir certa pessoa, mas, por erro na execução, lesa outro ser humano, o efeito é o mesmo. A lei penal protege qualquer indivíduo, não importando quem seja. Dessa maneira, se A quer matar B, embora termine atingindo C, continua a haver homicídio. E, com razão, responderá o agente como se tivesse eliminado a vítima desejada, com todas as suas características pessoais”, diz o precedente.
A decisão do Tribunal Superior de Massachusetts modifica esse padrão legal quando o instituto da legítima defesa entra na história. Afasta-se do antigo princípio da “intenção transferida”, que aplicava automaticamente a intenção de matar o agressor à vítima não intencional, resultando em uma acusação de homicídio.
“De acordo com a nova regra, o réu pode usar a alegação de legítima defesa para justificar a morte de um terceiro, se ele agiu razoavelmente para se defender de um agressor violento”, diz a nova definição do princípio da transferred intent self defense na lei penal do estado.
Em outras palavras, quando uma pessoa usa legalmente a força para se defender de um agressor violento e acidentalmente causa dano a outrem, o princípio da “intenção transferida”, como era entendido, não se aplica porque o uso inicial da força é justificado, não malicioso (ou doloso), conforme explicam os sites jurídicos.
Homicídio culposo é uma carta na mesa
O Tribunal Superior de Massachusetts esclarece, no entanto, que há limites a essa causa exculpante. Por exemplo, “o réu pode ser responsabilizado criminalmente se sua ação impuser um sério risco de danos graves a vítimas não intencionadas”.
“O direito à legítima defesa não protege o réu de responsabilização por crime tipificado como homicídio culposo, com base em conduta imprudente ou temerária. A legítima defesa com intenção transferida é uma defesa parcial — e não completa — contra homicídio”, explicou o tribunal.
“A visão da Commonwealth é a de que, se o júri concluir que o réu não demonstrou cuidado e cautela normais ao responder à ameaça e matou uma pessoa inocente, ele ou ela é culpado(a) do crime menor de homicídio em segundo grau”, acrescentaram os ministros.
A corte afirma que é preciso estabelecer uma forma limitada de aplicação da “transferência de intenção” em casos que envolvem legítima defesa. “Deve-se estabelecer um equilíbrio entre o direito do réu de usar força letal para repelir um ataque e o interesse social em proteger pessoas inocentes imprudentemente feridas por ele.”
Os promotores devem provar, além de qualquer dúvida razoável, que “o exercício da legítima defesa por um réu foi arbitrário ou imprudente, de modo a criar um alto grau de probabilidade de que danos substanciais resultariam em uma vítima não intencional” para obter uma condenação, decidiu o tribunal.
Os advogados de Santana-Rodriguez comemoraram: “Essa decisão representa uma grande mudança na lei estadual da legítima defesa. Pela primeira vez, em 250 anos de história da Commonwealth, uma corte deixou claro que as pessoas que agem dentro da lei para defender suas vidas não devem ser tratadas como assassinas, por causa de um trágico acidente, que estava fora de seu controle”.
E a decisão certamente também foi celebrada pelas organizações que representam as fabricantes e comerciantes de armas, assim como pelas pessoas que gostam de andar armadas. Com informações adicionais de Boston Herald, The Boston Globe, Law 360 e Mass Live.
Fonte:Conjur